Mostrar mensagens com a etiqueta Marcador. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Marcador. Mostrar todas as mensagens

sábado, 16 de janeiro de 2016

Não se vê Futuro

A distopia parece ter-se tornado num género banal como suporte - e atractivo - para qualquer intenção literária.
Com Samuel Pimenta não é diferente. Ele não está interessado em pensar o Futuro, o que ele quer é uma composição rápida e facilmente identificável do Presente.
Uma metáfora onde possa explanar as suas angústias e que não precise de mais do que uma fachada erguida a partir de ideias que já nada têm de original.
Sofre de uma falta de domínio do que cria, um mundo com trezentos anos de erradicação de nomes onde não se encontra um personagem (numa população de milhões, pelo menos) definida por um número com mais de quatro dígitos, ainda que nascidos com décadas a separá-los.
Daí resulta tão incosistente a lógica da tirania que o protagonista afronta onde se apagam os nomes das linhas de Metro mas se deixa o seu código de cores, que proporcionaria um nome oficioso para as mesmas e que com isso contraria a lógica da execução.
Uma confusão de elementos que podem parecer ter os mesmos resultados mas não comungam dos mesmo princípios de controlo.
Retirar os nomes a tudo - de países a pessoas - é de um domínio logístico avassalador que quer uniformizar o mundo para melhor o controlar por via de uma obediência corporativa.
Perseguir gatos vadios e as pessoas que os acolhem é de um grau muito mais específico e de um esmagamento cruel da afeição humana que é muito mais lógica para um domínio de nichos.
Perante esta variação, o problema está afinal em pensar que o autor quer falar sobre formas de controlo do indivíduo.
Não fará sentido tal já que, num mundo onde se incentiva a vigilância dos vizinhos, basta inserir o seu próprio número de identificação (ou o de outra pessoa, no caso de não se ter a permissão...) para aceder a qualquer pedaço de informação confidencial.
Esta falta de segurança seria tosca numa história situada nos tempos correntes. É ridícula numa visão de um mundo distópico e autoritário e ajuda a perceber uma falha mais grave do autor.
Enviar a história para um Futuro próximo em que tudo é muito similar ao mundo em que vivemos e com alguns elementos - pouco desenvolvidos - que o alteram é, ao contrário do que poderia parecer, uma revelação da falta de imaginação.
Por um lado o autor não consegue descolar do que conhece e com isso trazer alguma riqueza para a história de Um Nove Um Seis que torne o protagonista mais pertinente do que as falhas do mundo em redor.
No seu preciso inverso, foi incapaz de expressar as suas ideias como sintomas do mundo actual, numa história que pudesse acontecer connosco, em vez de fugir para uma realidade não sujeita a escrutínio de verosimilhança.
Não haverá melhor exemplo do que a equação de Deus que, numa visão redutora, parece só servir para que os seus seguidores cedam dinheiro e se mantenham em sossego.
A este vacilante Futuro junta-se o pouco investimento na trama, esquemática porque existe em função da parábola do indivíduo com que Pimenta quer caucionar os seus leitores para as vidas que levam.
Uma atrocidade quando isso resulta em cenas de má composição que só têm de levar a história por diante. Cenas imberbes, vítimas eventuais dos propósitos "filosóficos" do livro, mas que deixam a sensação de um certo desprezo pelo género: a inspiração não precisaria de conhecimentos adicionais.
Só que essa inspiração não é uma presença detectada ao longo de todo o livro. A abertura e o remate do livro lêem-se como tendo sido escritos em conjunto e à parte do restante.
Resultado de inspiração, o princípio e o fim do livro buscam uma verve poética que talvez os sirva bem tendo em vista o estímulo à reflexão a que estão destinados.
O resto do livro abdica dessa linguagem para obter uma de maior funcionalidade. Só que esta deixa claro o esforço de criação, tanto das ideias que constituem o miolo como da própria forma despojada que as expressa - e que parece pouco natural ao autor.
Ao acabar o livro ficou por apresentar ao leitor um Futuro. Ficcional, claro, mas também o de um escritor capaz de fazer de um género uma ferramenta adaptada às suas ideias.


Os Números que Venceram os Nomes (Samuel Pimenta)
Marcador Editora
1ª edição - Setembro de 2015
176 páginas

domingo, 21 de junho de 2015

Perdido... de riso

Foi preciso um miserável filme para que se começasse a conhecer a obra de Kyril Bonfiglioli. Não só por cá, mas um pouco por toda a parte.
Valeu a pena aturar o filme para que houvesse um volume editado por cá, embora seja difícil aturar mais esta careta de Johnny Depp sobretudo conhecendo as ilustrações que Luke Pearson fez para as reedições Penguin Books.
Felizmente que iniciando a leitura é rápido o efeito de esquecimento da versão apalhaçada de Charlie Mortdecai que o actor fez.
Os comentários violentos e mordaz que a personagem faz a quem é, ficaremos a saber, o seu eterno rival dão-lhe uma voz própria que como se vai percebendo à medida que as páginas se sucedem, é inigualável.
Uma voz de quem vê o mundo com a perspectiva de que todo o Mundo é um antro de imoralidade e más intenções, pelo que isso lhe permite - aliás, o incita - a ser tão ou mais indecoroso do que os restantes.
Vai daí que o seu comportamento seja tão contrário à convivência social e à simples existência dentro da lei.
Pior que isso, o seu comportamento é errático comandado pelas contradições do seu feitio: a arrogância do seu gosto pessoal a debater-se com o desdém que revela por todas as ocupações.
Ainda assim chamam-no a ter um sentido de missão, mas o papel de herói não é para ele, muito menos se isso envolver algum tipo de acção que o faça levantar da cama antes do meio dia.
Assim a sua vida se torna uma trapalhada que só não é maior ou com consequências mais nefastas porque tem a seu lado o criado e guarda-costas Jock Strapp.
A relação entre eles é uma mistura dos relacionamentos pouco saudáveis entre Bertie Wooster e Reginald Jeeves e entre Jacques Clouseau e Cato.
Muita comédia entre Charlie e Jock tem uma forma e um sentido de ritmo que faz lembrar o slapstick, mas no final é a ironia com que Mortdecai brinda o seu parceiro e que parece rebater nele como numa parede que faz a diferença.
Lá está, é toda a voz do personagem criado por Bonfiglioli que arrebata o leitor e eleva o livro. Toda a sua virulência transmite a ideia de um mundo peçonhento em que só a sua atitude irresponsável permite mergulhar e emergir com algum tipo de dignidade, apesar do custo!
As suas descrições das ressacas e das curas que se seguem são tão inventivas que dão vontade de experimentar com maior regularidade tal estado de existência.
Charlie Mortdecai passa o tempo a perder-se nas suas divagações e é isso que "faz" o livro, tendo o leitor de aceitar perder-se sistematicamente.
Kyril Bonfiglioli pegou na ideia de Raymond Chandler de que nos thrillers interessa mais o ritmo da viagem do que a precisão da narrativa e levou isso até perto do caos às mãos de uma personagem que toma conta de tudo.
Não que a história deixe de ser curiosa e com enorme potencial, mas é mais importante que ela mostre como estes meandros são perversos.
Afinal Mortdecai consegue imunidade diplomática para, enquanto trabalha como espião, continua a negociar em arte de forma ilegal. E o seu rival, o inspector Martland, é um polícia que faz uso de todos os métodos que não vêm nos livros de regras.
Não se espere um grandioso final de mistério. A recompensa da leitura acontece a cada gargalhada sonora que não se consegue conter enquanto Charlie comenta mais um qualquer tema dos que o interessam.
Daí que faça um reconhecimento especial à tradução que parece ter mantido não só a eficácia das melhores tiradas do livro, como ainda deixar para reconhecimento do leitor o espírito Britânico das mesmas.
Claro que a tradução nunca será tão boa quanto ler a verve de Bonfiglioli na sua Língua original, mas aceita-se com prazer esta alternativa.


O Excêntrico Mortdecai (Kyril Bonfiglioli)
Marcador
1ª edição - Fevereiro de 2015
216 páginas

domingo, 25 de janeiro de 2015

Histórias vividas

O título informa-nos sem embaraço da herança que este livro tem para com o clássico de Ernest Hemingway.
O que lemos só o confirma, uma escrita directa e sem subterfúgios ao serviço da história de um velho homem que se entrega à Natureza - e à sua natureza - no final da vida quando poucas ligações humanas lhe restam.
Um homem que já só é caçador quando a Natureza o confronta e não por qualquer gosto sádico. Um homem que deixa o mundo moderno ao abandono e retorna ao chamamento da sua comunhão com o mundo natural.
Não que ele deixe de tentar preservar uma ideia de si próprio enquanto dominador da Natureza, tomando conta do jipe e tendo consigo as suas duas espingardas.
Trata-se da crença no seu próprio mito que vai esmorecendo no ritmo a que o jipe que o trouxe de volta ao mato vai enferrujando parado e sem préstimo senão o de lhe recordar o orgulho que lhe proporcionava.
Sem ser um caçador, ali entre uma população que ainda vive em comunhão com as crenças antigas, ele torna-se o sábio local.
Transmite-lhes serenidade com a sua presença e mesmo quando dele esperam que use as suas armas ele prefere dar à própria Natureza uma hipótese mais.
Transmite-lhes a Razão que domina os medos sobrenaturais daquela gente e transmite o seu conhecimento feito de histórias de pessoas que conheceu ou que lhe transmitiram ao longo da vida.
A sua presença naquela aldeia é a redescoberta de um propósito depois da morte da sua mulher e a chegada da idade adulta dos seus filhos.
Não aceitando uma reforma inactiva que espera muitos dos que se entregam ao conforto da modernidade, voltou a viver as dificuldades que um espírito mais novo busca
Fá-lo para legar àquele grupo de pessoas os seus conhecimentos, engrandecendo a história oral que um local como a aldeia no Norte de Moçambique preserva.
Há quem não precise da tecnologia que tomamos como indispensável à vida moderna, antes de uma sabedoria partilhada que possa derramar-se de uma geração mais velha para uma mais nova e assim vá ensinando a viver.
O livro de Sérgio Veiga sugere isso muito bem porque se lê e logo tem a sonoridade de um relato caloroso feito face a face.
Uma herança que ele nos transmite através de um seu avatar literário de nome Hermenegildo. Um nome que significa algo muito próximo de "sacrifício absoluto".
A personagem faz esse sacrifício físico apenas após redimir aquilo que lhe enchia a alma.
Não há como não concluir a partir disso que há gente viva dentro deste livro. Histórias que não parecem poder ter sido inventadas mas que têm obrigatoriamente de ter sido vividas.


O Velho e o Mato (Sérgio Veiga)
Marcador
1ª edição - Julho de 2014
176 páginas

domingo, 14 de setembro de 2014

A caminho da grande literatura

A história começa como uma aventura de uma criança fugida de casa, num relato que se pode considerar uma aproximação à literatura juvenil.
O tónico da amizade que esse miúdo cria com um velho pastor ajuda a que se sinta uma miríade de bons sentimentos exalando da história, o que só reforça a ideia inicial.
História que é evidentemente para adultos e isso deve-se a um realismo que vem da forma como evidencia o cansaço e a fome mas, também, do silêncio com que aqueles dois homens se relacional e, de certo modo, se exprimem um para com o outro.
Um realismo que está também na forte sugestão de desalento e medo que a escrita tem desde o início mas que só se torna mais definida quando o livro avança.
O relato vai ainda mais longe quando mostra o mal sem filtros. O vilão no caminho da dupla de viandantes não é apenas uma vaga figura em perseguição, é um opositor cheio de recursos de má índole e sem qualquer limitação moral.
Esse é o grande choque de que o romance é capaz, de fazer o leitor penetrar no ambiente aventuroso e bucólico dos bosques do interior espanhol (pobre), para depois lhe dar a (re)conhecer a dureza do mundo que está para lá da sua orla.
Uma versão sem filtros da ideia de "conto de fada", voltando ao aviso do tenebroso que os Grimm recolheram (e depois amenizaram).
Tenebroso moderno, a mais dura realidade reconhecível do mundo actual a pesar sobre a nossa alma numa escrita carregada da sugestão aflitiva do horror.
Só que essa ideia de "conto de fada" também leva a que a a história tome muitos caminhos que a vão simplificando.
Mesmo que o trabalho de escrita o disfarce, há um grau significativo de previsibilidade que afecta a história.
O trabalho de escrita vence com a procura da economia, o corte no supérfulo do léxico e, sobretudo, do conteúdo.
O autor não escreve as evidências da história até que seja inevitável os personagens a elas se referirem. E isso reforça os sentimentos de temor e desalento que o leitor recebe da história, mas no final a concretização dos motivos para esses sentimentos não consegue deixar de assentar em alguns lugares-comuns.
Isso acontece porque por várias vezes a opção de Jesús Carrasco é a de usar a história como um sermão, valendo-se de representações metafóricas nada discretas.
Como a do final do livro, uma chuva que vem limpar feridas do corpo e purificar feridas da alma, símbolo de um perdão dos céus. Simbolo mais repetidamente usado - e significado mais esgotado - talvez não haja.
Mesmo assim a impressão que o livro deixa do autor é a promessa de um feito maior breve e não tardio.
O romance deixa marcas no leitor devido á sua coragem, espera-se agora que o autor se torne mais sagaz no domínio das suas próprias intenções, para que a qualidade global do livro reflicta as melhores intenções literárias - e não morais - do autor.


Intempérie (Jesús Carrasco)
Marcador
1ª edição - Abril de 2014
216 páginas

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Nenhum homem é uma ilha... paradisíaca

O detective Fin Macleod é arrastado de volta à sua terra natal para a investigação de um crime que se relaciona com um outro que lhe coubera investigar em Edimburgo.
Arrastado em vez de atraído ou chamado, porque esta ilha de Lewis é uma grilheta que pesará para sempre, mesmo em quem a abandonou há décadas.
A própria ilha parece rejeitá-lo, primeiro na forma dos polícias locais que dispensam a sua ajuda, para depois o parecer fazer também com o seu clima agreste.
Será verdade que Fin vai recuperando algumas memórias com pequenos laivos de alegria da sua infância, só que estas acabam sempre por se transformar num sacrifício de retorno ao passado.
Afinal falamos de uma ilha onde ainda se realiza um rito de passagem à idade adulta:  a matança dos gugas. Um acto sangrento num ponto ainda mais isolado e inóspito do que a própria ilha.
O rochedo onde vão para a caçada ameça com a morte. A morte rápida pois a morte lenta já é vivida pelos habitantes da ilha.
As memórias de Fin mostram ainda alguma vida, vinda da juventude que lhe assistia, um contraponto mais intenso às deambulações actuais do detective.
Cada pessoa que ele interroga e cada cenário que ele visita adicionam uma camada mais à noção de que aquela ilha se vem tornando num túmulo da comunidade que outrora lá existiu.
Um túmulo coberto por uma atmosfera - magnificamente descrita por Peter May - que torna tudo ainda mais desolado e sombrio.
Aquele que deveria ser um lugar inabitável mantem cativos todos os que a partir de lá sonharam com outra vida.
Conhecendo aquela ilha vamos compreendendo a personalidade de Fin, sempre capaz de destruir as poucas bençãos que recebeu.
Demasiados são os fantasmas que continuam a caminhar lado a lado com as pessoas de Lewis, carregando a culpa dolorosa que eles deveriam deixar de sentir.
Alguns desses fantasmas estão, evidentemente, iludidos de que têm vidas a viver quando esta lhes foi sugada pela própria ilha que em troca lhes ofereceu o peso do Passado e o vazio do Futuro.
O caso que obrigou Fin a colocar de novo os pés naquele território revela ainda mais o quanto a ilha - e, sobretudo, o seu rochedo onde pela violência se julga criar homens - estripou por completo cada um dos que ali foi.
O caso que orienta a trama é intenso e tão inclemente quanto a própria ilha, capaz de ferir de morte qualquer réstea de esperança no humanismo dos que deveriam constituir uma comunidade isolada e, por isso, reforçada em torno de si mesma.
Não se podendo deixar de notar que o autor encerra o caso com alguma brusquidão, aceita-se que o faça para manter o foco como até aí em Fin Macleod.
Se o livro já era, até ao seu desenlace, um poderoso retrato da sua personagem principal, com o final que não poupa sequer Fin torna-se numa das mais desabridas exposições do interior de um homem que já foi escrito em livro.
Em A Casa Negra não há expiação possível. Não há maneira de acabar com uma ilha que instalou o seu próprio negrume no coração dos locais.
Fin recupera algo mais do que a memória do seu passado em Lewis, recupera o conhecimento das suas próprias falhas. Elas são o cordão umbilical que nunca conseguirá cortar para escapar àquele rochedo.


A Casa Negra (Peter May)
Marcador
1ª edição - Março de 2014
448 páginas