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quinta-feira, 28 de junho de 2012

A falta que as mulheres fazem

Estamos perante ficção científica nascida de uma ideia radical aplicada a uma versão plausível do presente.
Obra escrita num português desafiante - o que já se sabia - mas de contornos universais que assume a herança de alguns dos trabalhos de José Saramago e lhe encontra as relações com as obras de nomes como George Orwell ou Anthony Burgess.
Tudo começa com o primeiro dia de escola d'Ele numa sociedade exclusivamente masculina onde não se aprova ou ensina a violência mas onde esta é valorizada como medida da afirmação pessoal.
Os homens deixados por sua própria conta - e decididos a apagar todos os traços de efeminização - recorrem à violência como única expressão possível para a dureza dos valores que os rodeia e que não é atenuada por uma acolhedora compaixão (que pertence apenas às mulheres).
A existência grupal torna-se parte integrante do quotidiano porque os outros servem de escudo à agressividade mas, também, porque são o público que esta necessita para alcançar um significado hierárquico. São as formas de resistência das crianças que os homens nunca deixam de utilizar.
À medida que crescem, os rapazes do trio tornam-se mais eficazes e calculistas. servem-se do boxe para ganhar estatuto, protagendo-se sem abdicar de praticar a violência.
Também o boxe lhes serve de desculpa para viajarem para o exterior da cidade-estado e, depois, desertarem.
Longe da severidade da sua terra natal, este grupo descobre a indulgência de explorar a violência dos comportamentos excessivos tendo sempre a protecção das mães que lhes foram atribuídas e que os protegem em excesso ou a admiração dos que os consideram um novo espectáculo.
Procuram o confronto porque os outros o evitam. Consomem drogas porque os outros as censuram. Partem para uma louca road trip porque os outros não seriam capazes.
Repetem comportamentos que pertenciam ao seu domínio original porque não conhecem mais nada nem se dispõem a conhecer.
Até que tudo lhes falhe, até que a realidade venha exigir algo mais das suas existências, eles levarão ao limite o que as sociedades estão dispostas a aceitar.
Explorando esses limites num ambiente de atraente camaradagem, Hugo Gonçalves retrata os temas da violência que já conhecemos - hooliganismo ou crimes de ódio - para com eles fazer uma previsão de futuro muito mais certeira e um aviso muito mais tenebroso: as motivações para a violência estão cada vez mais distantes dessas comandadas pela falta de entendimento individual.
Tornaram-se agora reacções correntes a todas as situações, exibidas sempre que possível pelo prazer do efeito choque de uns concretizarem o que os restantes não foram capazes. Violência exibida pelos seus próprios executantes - cada vez mais novos - orgulhosos dos feitos e ignorantes das consequências.
Mas a jornada pessoal d'Ele obrigará a que regresse à cidade-estado depois desta sofrer uma revolução. A distopia criada por um regime vigilante e cheio de regras cedeu à sua própria limitação.
Ao nível político, como aos níveis biológico e sociológico, a cidade-estado falhou por incentivar apenas a agressão e nunca a reconciliação.
A cidade-estado que só aceitava que lá se produzissem homens criava armas que vendia ao exterior enquanto comprava de lá tudo o resto. Quando decide usar a força contra outros estados que lhe devem dinheiro, ameaça com o uso da força, esquecendo que à sua volta todos estão equipados com os mesmos meios de ataque, mas também com os meios de subsistência que a eles hes falta.
Aquela sociedade exclusivamente masculina não percebe que o brado masculino é inerente a todos, estando apenas acalmado pelo sossego feminino. Para a política externa falta aos governantes a sensibilidade de amenizar as palavras enquanto dá o murro na mesa.
Não é, também esta, uma visão extrema dos conflitos movidos a urânio enriquecido e palavras pouco ponderadas?
Fazem falta mulheres nos postos-chave da vida das nações como fazem falta no posto-chave - o de mãe... - da vida dos homens a quem estas serão confiadas.
Pode não ser totalmente visionário, mas é um alerta de moralidade para um mundo a desintegrar-se. Melhor ainda que seja uma óptima história, escrita com a dureza dos capítulos curtos e intensos (como rounds de boxe, pois claro) e com a sensibilidade de olhar em volta e descrever o que vai na alma dos que se preocupam com o mundo.


O Coração dos Homens (Hugo Gonçalves)
Oficina do Livro
1ª edição - Março de 2006
232 páginas

terça-feira, 25 de outubro de 2011

... e beijos com Língua

A primeira coisa que se nota neste livro é a frescura libertária da escrita de Hugo Gonçalves que não tem medo de introduzir sonoridades novas num uso educado da Língua Portuguesa
Ele vai buscar expressões que parecem ter saído directamente de um improviso tornado norma no seu círculo de conhecidos. Expressões que passam por serem norma interna com que ele nos convida a escutar os seus relatos, também eles dignos dessa partilha entre amigos.
Isso dá-lhe agilidade, permite-lhe expressar em duas palavras o que outros escritores teriam de explicar longamente.
Fred fazia colherzinha comigo é a forma que ele encontrou para explicar que acordou para encontrar um amigo encostado a ele numa posição de concha. Parece tão mais simples e elegante naquelas quatro palavras que ele escolheu...
Este exemplo sai da "fase brasileira" das crónicas do autor (quem sabe se a expressão não é vulgar do outro lado do Atlântico...) mas é o género de pequena ousadia que ele tem sempre que pode.
É mais do que agradável percorrer as histórias de Hugo Gonçalves, as suas percepções do mundo e da vida privada misturadas e explanadas de uma forma capaz de tocar todos os leitores.
Sinal de um bom cronista, ainda que o prazer ao longo do livro dependa sempre da empatia que se tem com os temas que vão rodando pela caneta de Hugo Gonçalves.
Além de, também, depender do grau de acerto com que o autor se atira a elas.
Quando ele usa mais o humor e menos a seriedade afectiva as suas crónicas são bem melhores.
A sua abordagem menos discreta à falta de qualidade dos minetes dados pelos portugueses (ver aqui) é mais interessante do que a sua respeitosa abordagem aos problemas que as mulheres partilham com as mulheres de Verona com a missão de responder às cartas dirigidas a Julieta. Os temas são distintos, o primeiro será sempre mais divertido e ousado, mas o autor deveria ter encontrado maneira de dar a mesma identidade pessoal na abordagem a ambos.
Talvez seja ainda uma personalidade de cronista em construção, a precisar de deixar de ser tão oscilante ou, então, meramente uma falta de contextualização da origem de cada bloco de críticas que se distinguem pelos temas e pelas formas de abordagem - negando a afirmação de João Tordo de que o livro se constrói como um romance pela coesão das crónicas e a abrangência da vida que abordam.
Se há uma identidade inequívoca do autor em todas as crónicas é, como disse antes, da sua abordagem linguística, original e distinta.
E mais do que as crónicas de uma página são os contos com oito ou dez delas que realmente ficam na memória, como aquele que encerra o livro chamado Escrever pode Matar, escrito do ponto de vista feminino, repleto de ideias fortes e melhor articuladas numa estrutura excelente. Redime qualquer fulgor que as crónica percam ao decaírem do minete para a versão shakespeareana dos conselhos da revista Maria.


Fado, Samba e beijos com língua (Hugo Gonçalves)
Clube do Autor
1ª edição - Abril de 2011
208 páginas