Entre as mais difíceis e mais admiradas críticas que terei de escrever neste blogue, esta estará sempre contabilizada.
As características com que Álvaro Cunqueiro impregna o seu trabalho são tão ricas que um texto breve neste blogue não conseguir
O Ano do Cometa é um livro cuja revelação tem um poder que comparo facilmente à primeira leitura de Italo Calvino.
Álvaro Cunqueiro, como o escritor italiano, não suprimia nenhum traço de imaginação ou influência de Lendas. Aceitam que tudo o que imaginam é parte integrante da sua própria realidade e, como tal, material passível de ser usado na criação.
Este seu trabalho cai numa categoria que só pode ser designada como realismo pessoal, lá cabendo tudo o que lhe é natural pensar e que para a maioria dos outros - seus leitores, se tiverem sorte e ensejo - é um prodígio de invenção que não conseguem conceber que eles próprios venham a alcançar.
Esse tal realismo pessoal, com a História e os Mitos revistos à luz da afinidade de Álvaro Cunqueiro, obriga a que as regras sejam recriadas à medida dos desejos do autor.
Desde logo quebrando a limitação que o friso cronológico tende a impôr sobre a narrativa. Aqui o tempo da aventura tanto desemboca no tecnicolor do século XX como aceita que São Jorge cavalgue por ele dentro.
Trata-se da simples percepção de que os Mitos são intemporais e que para que eles valham na narrativa é necessário recusar a precisão do romance (de aventuras) histórico. E, dessa forma, abraçar o jogo metaliterário que procura o seu enredamento na expressão de que a própria história é a metáfora de como ela foi criada.
Não há limites para os significados semi-ocultos que esta aventura mostra - muito menos para os que deixa ainda por mostrar - de como ela própria é o reflexo das dúvidas e opções do seu criador.
Cunqueiro começa o livro dizendo O autor tinha escrito um prólogo para este romance. Depois escreveu outro. Como não conseguiu saber qual dos dois era o mais apropriado, publica ambos. e com tal demonstrando a sua reflexão mais premente sobre o acto de narrar. A sua pergunta é tanto sobre o "como" como sobre o "porquê" de deixar de fora mil vozes em favor de uma só. Por isso os seus narradores quase se degladiam pela posse de um capítulo ou até mesmo de um só parágrafo.
E falando de vozes falo, também, de temas. Cunqueiro põe em evidência a loucura de contar apenas uma das suas histórias para deixar todas as outras desaparecerem do texto.
Tudo o que povoa a mente de Cunqueiro é igualmente interessante, certamente mais interessante ainda comunicando entre si.
Ele responde a si mesmo negando-se o direito de fazer a separação quando esses temas constituem o núcleo de fios da personalidade do autor e das suas criações literárias que os traduzem.
Se num determinado momento tem de sacrificar o número de palavras para que consiga terminar o livro - contar é uma arte eterna para o escritor - e, assim, assentar apenas parte de todas essas histórias, o próprio autor/narrador avisa para essa falha, dando-nos a consciência do que podemos tentar imaginar com ele.
Lê-se, logo no início do primeiro dos dois prefácios anunciados anteriormente, Esta história devia começar como as velhas crónicas, com o relato da criação do Mundo. Mas começa com morte de um homem. e estamos cientes de que o autor confia em nós para saltar as mil páginas que seriam a introdução a esta aventura ao mesmo tempo que inicia corajosamente o complexo jogo de metaliteratura.
Tal como Paulos procura encontrar para os outros os sinais reais que confirmem a verdade dos seus sonhos, assim Cunqueiro procura traduzir em palavras o poder da sua imaginação.
Talvez nunca consiga expressar-se com a precisão do que vê nos seus sonhos, mas mesmo assim interpela o leitor e interpela a própria noção de romance de uma forma que merece ser titulada como sendo de génio!
Até porque muitas vezes neste texto usei a palavra "aventura", sem medos e com toda a convicção de que é um rico entretenimento desmascarado como uma reflexão intelectual sobre os limites da arte narrativa.
Sabendo que aqui não atinjo a riqueza do livro de que vim falar, apenas posso esperar que este texto tenha despertado o interesse dos seus poucos leitores e que estes partam à descoberta de um sonhador que não se deve deixar morrer pela via cruel do desconhecimento!
O Ano do Cometa (Álvaro Cunqueiro)
Guerra & Paz
1ª edição - Novembro de 2010
208 páginas