O livro já estava lido e à espera da crítica há algum tempo, mas com o concerto do autor no Pavilhão Atlântico a forma inicial do texto altera-se, apenas em parte involuntariamente.
Torna-se difícil não encontrar pontos comuns entre o intérprete e o escritor quando os encontros com cada uma das encarnações estão tão próximos, mesmo se elas distam quase cinquenta anos entre si.
Ver Leonard Cohen ajoelhado no palco é percepcionar uma forma de comunicação com o divino, não numa oração mas na protecção das suas palavras para que Deus se debruce para melhor o ouvir.
Uma abordagem à religião onde obriga Deus a religar-se ao que os humanos têm de extraordinário, a aproximar-se do nosso domínio.
O mesmo que faz em Vencidos da vida onde faz com que a concepção do divino e o mais primordial - mas também o mais complexo - dos desejos humanos se cruzem.
Desejo esse que é sexual mas, inevitavelmente, também afectivo. Por isso a complexidade das relações que se estabelecem entre três pessoas, três amigos, três amantes.
Relações que os satisfazem enquanto os encaminham para uma crescente perda, uma crescente miséria e uma crescente destruição. E, eventualmente, uma breve salvação final talvez incompreensível.
Mas Leonard Cohen em palco não é apenas uma lenda curvando-se para melhor se expandir para o público. É, também (e ainda), um energético duende, saltitando pelo palco como que distribuindo uma alegria que falta ao público bem mais novo. Um duende cujo mágico tesouro guarda em si mesmo.
Cohen não se esquiva a usar no palco todas as hipóteses que despertem o espectáculo e o mesmo faz com o livro.
Ele chamou-lhe um delírio, quem o analisou chamou-lhe experimental, mas no fundo trata-se da forma que um escritor tem de concluir a tal ligação entre divino e terreno/sexual/animal, que é tentar ligar todos os pontos do universo que estão entre um e outro ponto: tocar todos os destinos e falhar todas as hipóteses, ir a todo o lado sem sair do limite da página em branco.
É por isso que a par do triângulo amoroso, uma outra história se cruza neste romance, a de uma índia Mohawk que se tornou santa no século XVII de nome Kateri Tekakwitha.
É por isso que todos os estilos literários e todos os géneros narrativos se espraiam pelas páginas sem que haja regras que os limitem.
Tudo cabe nestas páginas porque as frases ganham liberdade para se elevarem acima da sua condição de palavras sequenciadas.
Podem assumir a forma que quiserem porque quem as molda as criou como se elas não tivessem existido já antes dele. E por mais formas retorcidas, todas as frases reconhecem-se como pertencendo ao mesmo autor.
Com os novos arranjos, todas as músicas de Leonard Cohen parecem fazer parte de um único corpo, pleno de classe e classicismo.
Se nem todas são obras-primas inesquecíveis, não se pode deixar de as ouvir a todas para melhor compreender a forma como de entre o bom se destaca o excelente.
O mesmo se conclui do livro. Nem sempre nos arrebata, mas para ler frases como A noite é a gasolina dos meus sonhos desperançados., todas as páginas merecem a nossa atenção.
Assim é quer com a música, quer com as palavras escritas. Assim é com Leonard Cohen, um criador acima de todos os outros e tão igual a nós.
Vencidos da vida (Leonard Cohen)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Julho de 2011
296 páginas
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