sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A Consciência dos Tempos

Depois de Mona Lisa desaparecida ficou-me o gosto por um estilo de ensaio histórico de género policial que enrede num estilo emocionante um conjunto abrangente de revelações sobre o tempo em que decorreu.
Mas os elementos que unem estes dois livros - e, eventualmente, esta forma de abordagem - são mais complexos para a forma como encaramos o que o mundo foi e o que o mundo é por comparação.
Desde logo, o elemento criminal parece ser essencial para moldar uma reportagem longa a um page turner.
Isso leva a que os temas escolhidos sejam fortes e plenos de notoriedade mesmo tantos anos depois de ocorridos: antes o roubo da mais conhecida obra do mundo, agora um assassinato "impossível" numa carruagem de comboio.
O fulcro do tema que une os dois é, mais do que a criminalidade, a abordagem a um momento que mudou o âmbito do meio em que ocorreu, moldou o progresso futuro dos países em que se deu e, sobretudo, marcou um momento de perda de inocência do mundo.
Ambos os crimes marcam um momento em que uma confiança instituída se confronta com a transformação - para pior, claro - dos limites da moralidade humana.
A confiança que os franceses colocavam no valor cultural da Arte acreditando que esta se defendia de qualquer ameça é a mesma confiança que os ingleses colocavam no valor social das classes que protegiam as classes mais altas dos comportamentos desviantes das classes baixas.
O comboio, onde essa separação se exprimia fisicamente, era considerado seguro nesse aspecto, deixando o livro transparecer uma fé na separação auto-imposta de cada viajante de acordo com a classe do bilhete que comprara.
Os protestos quanto à segurança nos comboios falavam da impossibilidade de alguém se sentir mal e comunicá-lo ao condutor, mas não pensavam que alguém viria a entrar numa carruagem que não a sua - e, muito menos, que matasse alguém no interior do comboio.
São casos em que a honra culturalmente entendida servia como salvaguarda na mente de quase todos, o que torna ainda mais abrupto e violento o despreparado acordar para a nova realidade.
Claro que um livro com trezentas páginas não se sustenta só nesta perda da inocência.
Seguimos depois a investigação policial - e indignamo-nos com aspectos desta que hoje seriam inadmissíveis - até ao desenrolar do julgamento (a parte final do livro em que este perde algum ritmo por ser então demasiado minucioso).
Ficamos a conhecer o tipo de exploração jornalística do caso, muito mais desregulada e indecente do que a de hoje em dia.
No fundo ficamos a conhecer um momento em que o mundo estava confiante na sua auto-preservação à conta de regras de conduta não escritas. Mas em que estava, igualmente, latente - e até mesmo expectante - um carácter predador de um qualquer momento de menor dignidade humana.
Este momento da história do final do século XIX - nunca de forma isolada - haveria de deixar marcas nas exigências de exemplaridade que a sociedade haveria de fazer às entidades envolvidas no caso.
Na mesma medida, deixaria marcas na maneira como a sociedade reagiria, com tanto de fúria irracional como de curiosidade mórbida, ao tipo de delito cometido e noticiado mundialmente, sem controlo local de espécie alguma.
Mais um exemplo contribuindo para a perda de inocência que tornou os "bons cidadãos", em simultâneo, em vítimas e criminosos. Vítimas, inevitáveis, do seu próprio medo ao menos. Criminosos, por cumplicidade, da exploração de cada crime.
Os "bons cidadãos" ganharam consciência do mundo em que viviam e nós tomamos consciência das raízes do mundo em que agora vivemos. Tudo à conta de um homicídio violento numa carruagem de comboio que viajava com destino a Hackney ainda no ano de 1864.


O Chapéu do Sr. Briggs (Kate Colquhoun)
Bertrand Editora
1ª edição - Junho de 2012
312 páginas

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