quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Poucas páginas de um grande fôlego

As novas tecnologias têm permito a muitos escritores (e argumentistas, já agora) encontrar soluções fáceis - e, consequentemente, simplistas - para tramas que montaram com esmero.
Pequenos precalços - um telemóvel que não foi colocado no modo "Silêncio", um portátil deixado desbloqueado em cima da mesa - que substituem o esforço das personagens que antes perdiam muito mais tempo a superarem as barreiras que encontravam.
O caso d'O Escritor-fantasma é o oposto, potenciando um trabalho clássico através das características da internet.
Ou seja, nesta história em que o correio de fã se confunde com a chantagem e em que a discussão entre escritores se confunde com a raiva, o email surge como hipótese de acelerar o processo de recepção das mensagens: em vez de decorrer num período alargado, tudo ocorre num único dia.
Mais do que isso, o email permite que o protagonista responda a quem a ele se dirige, ainda que continue sem conhecer a respectiva identidade de algum deles.
Esse é um detalhe, mas um detalhe significativo que permite realçar a perspicácia de Zoran Živković enquanto escritor a braços com o mundo moderno mas com a inventividade de uma literatura passada.
Este seu pequeno (mas riquíssimo) livro é um jogo desafiante sobre a natureza de ser escritor, sobretudo quando confrontado com as muitas exigências externas.
Não se trata apenas das exigências que outros fazem ao seu talento e esforço, mas também do facto de cada vez mais a escrita pausada e retrabalhada ver o tempo que lhe é devido diminuído pela escrita mais imediata.
No mundo de hoje, escreve-se (e lê-se, já agora) mais mas nem sempre melhor. Quanto texto produzimos (e encaramos) fora do âmbito literário? E quanto desse texto sobreviverá para lá do espaço limitado dos discos rígidos e da memória que salta para a página seguinte?
O livro serve como consciência das novas distracções que o mundo opõe à arte literária e do esforço que representa manter-se como peão desse mundo.
Tudo num estilo cativante que oferece um verdadeiro tratado de psicologia dos seus personagens, levado até ao limite por uma resolução da qual até se pode desconfiar mas na qual não se consegue acertar.
Um final que reafirma que tal execução só é possível num obra literária, reiterando a importância que esta ainda guarda e afirma por entre todas as outras artes narrativas.
Na verdade, o confronto a roçar o thriller que se faz por email só se consegue num meio que valoriza a palavra, que permite que tudo se passe apenas com uma única "presença física" mas com um trabalho redobrado na elaboração precisa do texto que é enviado ou recebido.
A verdadeira emoção surge dessa busca pela expressão exacta, pela correcta maneira de dar a entender ou de deixar por entender a verdadeira intenção do autor de cada missiva.
São um pouco mais de cem páginas com várias outras nuances que cada leitor quererá descobrir por si. Um trabalho de verdadeiro escritor sobre textos e falta de inspiração.

Numa nota paralela, devo recriminar (ligeiramente) a Cavalo de Ferro, editora que muito me agrada e que até hoje não me merecera tal reacção.
A verdade é que a presença do texto crítico de Michael A. Morrison no lugar de posfácio é um abuso editorial.
Não acredito que tenha sido só para encher páginas, pelo que não é nesse sentido que faço o reparo.
Assinalo-o como revelador de uma leitura d'O Escritor-fantasma que tem como base um conhecimento detalhado de toda a obra de Zoran Živković, a que o leitor português (ainda) não teve acesso.
O texto, que justifica um exercício literário que ainda não tínhamos conhecido da parte do escritor, acaba por servir como substituição à necessidade de publicar as restante obras do autor, assim justificando a escolha para edição deste texto recente por algo mais do que a sua actualidade.
O posfácio deveria vir com um aviso sério sobre as revelações que lá ocorrem e sobre a maneira como faz uso de muitos excertos do autor a que não tivemos acesso.
É um caso que faz pensar nos méritos da troca das edições portuguesas pelas inglesas para ter acesso completo ao autor. Não sendo um caso demasiado grave, é uma falha que atinge a sensibilidade dos leitores.



O Escritor-fantasma (Zoran Živković)
Cavalo de Ferro
1ª edição - Maio de 2012
144 página

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