O livro começa e o narrador está à conversa connosco, relatando a história de um jantar que promete ser uma catástrofe reveladora.
Pela forma como Paul, de início, vai contando o que se passou, não é possível imaginar quão maior será a catástrofe e como ela não se expande a partir daquela refeição mas culmina nela, várias vidas implodindo naquelas duras horas à mesa antes de voltarem a expandir-se com brutalidade.
O seu relato começa pelo contexto social que nos coloca em sintonia. As suas observações são pertinentes, merecendo a partilha daquele sorriso concordante de quem já experimentou o mesmo mas nunca teve oportunidade de o dizer.
O local, um restaurante demasiado pedante onde os empregados usam o dedo mindinho para sobrevoar a comida à medida que a descrevem.
A companhia, o seu irmão candidato a primeiro-ministro que não pode conviver sem se fazer ser visto.
A conversa, um caso aparentemente complicado entre os filhos de ambos que cada casal deveria resolver em casa por si próprio.
O monólogo colocou-nos confortáveis, estamos a partilhar o entendimento de Paul, claro que a vontade individual de cada um deve ser respeitada. Isso não é egoísmo nem arrogância, é a preservação da singularidade.
Nesse momento Paul começa a deixar-nos desconfortáveis.
Que tem a ver com o jantar que ele tenha feito chorar uma das suas alunas por culpa de um mau trabalho sobre a II Guerra Mundial?
Será que podemos ainda sorrir em concordância com as opiniões dele sobre a possibilidade de nem todas as vítimas desse conflito terem sido pobres incocentes? Ainda por cima falando dos Judeus?
Nós interlocutores de Paul, que estamos condenados a ouvir sempre pois a duvidosa alternativa é fechar o livro e não saber mais, somos repentinamente obrigados a defrontarmo-nos com as nossas próprias convicções e a distância que vai entre os dois limites essenciais: aquilo que aceitamos nos outros e aquilo que rejeitamos em nós.
Ou, dito de outra forma, a distância entre aquilo que verdadeiramente pensamos e o politicamente correcto que deixamos os outros conhecerem de nós.
Bem, podemos aceitar ainda algumas das suas opiniões, há áreas coincidentes, ele pode ser pouco polido a expressá-las mas nós sabemos a forma correcta de as tratar. Somos, afinal, liberais com sentido de decêndia.
Então mas que história é esta agora de relatos de violência e diagnósticos de problemas psiquiátricos com propensão genética?
Paul é maluco e nós concordamos com ele... Não pode ser, temos de rejeitar desde já todas as suas opiniões e todas as suas decisões acerca do caso que o levou àquele jantar!
E então estamos a rejeitar também algumas das nossas próprias opiniões. Será que não somos assim tão boas pessoas como nos julgávamos?
Por outro lado, Paul parece apenas ter defendido o seu filho e o seu papel como pai. O instinto primário de todo o ser humano normal e até dos animais, defender a cria e salvaguardar a família.
A dúvida arrasta-se com o leitor sobre o grau de confiança que se pode ter em Paul e, a partir daí, em nós próprios.
Este homem só quer um pouco de assentimento para os seus problemas e no processo quase destruiu a noção que temos de nós próprios.
Sobretudo porque, no final, nos conta algo que demonstra um grau de racionalidade - cinismo, mesmo - que costuma ser defendido como uma importante qualidade para vencer no mundo. E, ao mesmo tempo, mostra que aqueles à sua volta que pareciam figuras estóicas e decentes podem ser piores do que ele - que ao menos reconhece o seu problema.
A revelação chocante que ele nos faz, a razão que juntou dois casais para jantar, parece até menos importante do que tudo o resto que a ela levou e que ela despoletou.
O caso de violência que os traz ali pode ser visto à luz das circunstâncias, mas o que dizer de quando a mulher de Paul lhe pede que cometa um outro acto de violência para compôr as suas vidas?
Ela que parecia ser um pouco mais sã requer violência dele e ele diz-lhe com perspicácia que se for ele a ser violento, tal poderá ser imputado à sua condição e não transmitir a mensagem esperada.
A sua lógica traz-nos de novo a um reconhecimento que não aceita que tudo o que Paul opinou possa ser colocado de lado como se de loucura se tratasse.
Paul é pouco fiável, mas não é um maníaco que deva estar numa cela almofadada. Afinal, nós também não devemos.
Paul não será, certamente, uma réplica literária de Herman Koch. Como os leitores, o autor deve concordar e discordar dele.
Deve, também, interrogar-se sobre os limites do politicamente correcto e da censura que essa definição começa a impôr.
Um medo de expressar seja o que for senão num ambiente extremamente controlado onde só estão os familiares ou os amigos - e mesmo assim nada garante que mesmo eles não julguem.
Se Herman Koch queria, com este livro, obrigar-nos a pensar sobre o estado da nossa relação pessoal com a liberdade de expressão, consegue-o, perguntando-nos de forma clara se podemos viver sempre em restrição só para não ofender outros com a verdade - ainda que uma verdade que aceita contraditório e pode ser corrigida.
Nem sempre terá sido tão subtil quanto deveria e literariamente a eficácia - afinal, trata-se de um relato oral - pode custar-lhe alguma delicadeza. Mas o efeito é alcançado com elevada eficácia.
O Jantar (Herman Koch)
Alfaguara
1ª edição - Junho de 2015
304 páginas
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