Torna-se impossível não começar esta crítica por referir o racismo latente neste livro, até porque a própria introdução que a editora fez ao livro chama a atenção para ela.
Não que fosse necessário, pois o autor é sempre bastante peremptório em evidenciar um (mau) entendimento genérico e preconceituoso dos povos Asiáticos e, sobretudo, o Chinês.
Desde "ameaça amarela" ao "maior dos perigos para o Ocidente", o autor não se inibe de apelar ao sentimento de medo dos seus leitores de há cem anos atrás.
Visto no contexto desse tempo e do tipo de sentimentos que por essa época nasciam de uma ignorância alimentada pela especulação, todas essas classificações são facilmente aceitáveis e esquecidas na busca por um pouco de emoção literária à moda antiga.
Até porque me parece que Sax Rohmer nunca saiu do seu pequeno canto do mundo e generalizava a partir dos casos criminoso que cobria como jornalista.
E, mais ainda, a tal especulação mediática acerca de povos distantes ainda não desapareceu por completo, apenas mudou o seu alvo (ou tem dias...).
Por isso eis-nos perante a origem de um mais míticos e persistentes vilões da cultura popular, Fu Manchu.
Apesar da escrita palpitante e com uma boa dose de qualidade que fazem perdurar apenas os melhores de entre os pulps, não terá sido por este livro em particular que tal aconteceu.
A história, apesar de substancialmente coesa, não deixa de se revelar como a colagem de uma série de episódios que devem ter nascido de forma independente antes de chegarem a esta forma.
Saltitando de cenário em cenário, do Ocidente conhecido até ao exótico Oriente, o livro assenta na perseguição de Nayland Smith a Fu Manchu.
O primeiro, apesar de esforçado, não é o melhor dos investigadores. A maior parte das vezes as suas conclusões não chegam a tempo de evitar os crimes de Fu Manchu e mesmo as suas melhores tácticas acabam por falhar por lapsos ou simples erros de julgamento, senão ainda de forma mais simples por azares imprevisíveis.
Sendo o objectivo manter Fu Manchu um passo à frente do seu rival para a perseguição continuar, pelo menos são tácticas mais aceitáveis e interessantes do que as fugas de último segundo que os filmes de acção costumam usar.
Ainda se sente a tensão e a frustação do jogo do gato e do rato sempre falho de conclusão que o autor pretendeu criar em 1913. Este efeito intacto é um bom sinal de vitalidade e não se compara com cumprir da cartilha que colocam os heróis modernos em perigos dos quais terão sempre de sair para não acabar ali a história / saga / exploração.
O herói aqui, Nayland, interessa menos do que o seu rival e está lá mesmo a reconhecer-lhe a inteligência e evidenciar-lhe os recursos, sem deixar de apontar o quão melhor era serem usados para a evolução do mundo.
Fu Manchu, pelo contrário, prefere o secretismo e o seu plano é, precisamente, eliminar todos os Ocidentais que pudessem esclarecer o Mundo sobre o Oriente.
O seu plano é o de fazer perdurar a ignorância para que o Ocidente não possa tomar uma posição até ser tarde demais e Fu Manchu já dominar toda a Ásia.
Para concretizá-lo precisa apenas de matar uma dezena de homens e não exércitos inteiros, o que revela bem o brilhantismo quer de Fu Manchu quer do seu criador.
Ainda assim, a verdadeira razão para Fu Manchu perdurar não é o seu plano mas os recursos das suas armadilhas que só se podem classificar como extraordinários.
Sejam homens capazes de escalar os mais íngremes telhados e simular que uma pessoa se mata lançando-se da janela ou a divertidíssima nuvem mortal num corredor que só contém alguns cogumelos, a inventividade de Sax Rohmer para o seu personagem é inigualável e merecedora de uma superação (que não é difícil) da forma como o autor se refere aos povos asiáticos.
Até porque há algo que se deve reconhecer àquele "racismo" que desde o início se falou. Ele permite que Fu Manchu seja mais do que um homem, seja um sábio talento para o Mal que pode passar de homem para homem sem diminuição do perigo, o que o torna de facto imortal: não só na ficção mas na memória dos leitores!
O Mistério do Doutor Fu Manchu (Sax Rohmer)
Editorial Vega
Sem indicação da edição - Março de 1979
336 páginas
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