Conheci agora o comissário Adamsberg e não creio que me deixe de dar com ele tão cedo. Com ele e com a equipa, mas já falarei de quem o acompanha.
Por agora, falarei de Jean-Baptiste Adamsberg, um investigador que merece o seu lugar na galeria dos memoráveis líderes de polícia ficcionais.
O método não é o seu modo de trabalho, prefere antes a espera pela iluminação súbita. Não se pode dizer que tenha instinto, o que ele faz é comungar com a realidade em torno do crime e esperar que alguma acção lhe pareça útil.
Se isso resultar na morte de uma vítima mais, esse é um custo inevitável que se lamenta, mas cuja culpa dificilmente se lhe pode imputar.
Inclusivé porque, em paralelo, ele tem outros temas importantes a cirandarem na sua mente, como o caso da crueldade para com os pombos de Paris - alguém lhes ata as patas e os sujeita a morrerem à fome.
Um dos polícias mais zen que vamos conhecer, senão veja-se a sua equipa. Um dos agentes sofre de hipersonia, outro é uma útil mas irritante fonte de conhecimento escrito, outro tem de ter um estoque permanente de comida na esquadra - onde há um gato que dorme em cima da fotocopiadora - e uma mulher cuja presença vale por todo o resto do departamento junto.
Surpreende menos que ele consiga resultados com esta equipa do que dentro de dela hajam disputas de ciúmes para ver quem recebe maior aprovação de Adamsberg.
Eles, como o leitor, sentem-se atraídos para o comissário de forma intraduzível para um discurso lógico.
Sobretudo tendo em conta que Adamsberg contorna as regras policiais para melhor fazer valer aquela que é a sua consciência e pela qual as chefias devem controlar a realidade criminal de pequena monta.
O que, neste caso específico, quer dizer levar o seu filho para uma investigação como ajudante para proteger um incendiário que ia ser acusado e condenado de forma expedita por um assassinato que Adamsberg provará que ele não cometeu, se lhe derem tempo.
Arrisco dizer que tudo se deve a um irresistível apelo da sua personalidade, que aceita o mundo para nele intervir em vez do alterar de forma brusca na procura de respostas.
A mesma personalidade que lhe vale algumas conquistas quando se dirige à aldeia de Ordebec para investigar o caso das mortes anunciadas pelo Exército Furioso, horda de cavaleiros mortos-vivos que aparecem em visões a alguns escolhidos e em que ninguém da aldeia acredita. E em que ninguém deixa de acreditar!
Vale-lhe a amizade imediata de uma velha senhora desconfiada até dos seus conhecidos e o apoio de um nobre local ainda com poder de influência.
Depois ele está mais ou menos livre para fazer o seu trabalho, dedicando-se aos detalhes que parecem inúteis para os outros e falhando em dar os passos que outros acreditam ser óbvios.
Tornando a trama policial ainda mais aliciante estará o facto de serem os próprios métodos pouco consistentes do comissário que servem para que o criminoso manobre em direcção à garantia de impunidade.
Que apesar disso o caso se possa resolver com base nuns pacotes de açúcar encontrados durante um descanso para reflexão é notável e só Adamsberg o poderia fazer.
Embora também seja verdade que com a linha de inquérito seguida, nem o leitor mais atento tem as pistas para deslindar o caso antes disso...
Este policial não se conta entre esses em que o mais importante para o leitor é tentar bater o detective.
Na verdade, Fred Vargas aproveita para explorar a essência da vida Francesa para lá de Paris - muito embora deva ser tão ou mais interessante saber como olha Adamsberg para a capital.
Locais um pouco perdidos onde os mitos convivem com a realidade e onde a identidade local se mantém tão vincada que ao lá chegar Adamsberg parece ter atravessado meio mundo.
Além de que o autor se preocupa mais em criar personagens palpáveis cuja absorção em si mesmas - de que Adamsberg será sempre o pináculo - valoriza as suas diferentes identidades e como elas se conjungam, falhadas que são, num todo que funciona policial e humanamente.
Como se vê pelo caso que o comissário resolve logo nas primeiras páginas do livro, não são precisas mais do que migalhas para fazer o trabalho de polícia. Mas para com elas trabalhar é preciso abraçar o mundo com uma certa dose de imersão poética até perante o seu lado medonho.
O Exército Furioso (Fred Vargas)
Porto Editora
1ª edição - Outubro de 2014
368 páginas
Sem comentários:
Enviar um comentário