domingo, 22 de julho de 2012

E é assim

Este é um romance que começa no capítulo 2. Mas no final do capítulo 1 já fomos avisados de como começa e de como acaba tal romance.
O capítulo 1 não pode ser ignorado! É dos mais importantes para compreender que o narrador do livro está colado ao seu autor, transportando-o de encontro aos leitores como personagem da voz real que deve conseguir ecoar nas suas cabeças.
Ele narra a história de Billy Pilgrim que se tornou volúvel no tempo, o que quer dizer que vive a sua vida sem seguir a ordem específica. Ele experimentou a sua própria morte e depois continuou a viver como se nada tivesse sido.
Nada que perturbe Billy Pilgrim depois dele ter sido levado até ao planeta Tralfamadore onde aprendeu que todos os momentos existem simultaneamente, ainda que os humanos não consigam ver tal realidade, o que leva a que todos os momentos estejam determinados e sejam inevitáveis. Mesmo a sua própria morte.
Inacreditável?
Não mais inacreditável do que o facto de alguém ter decidido bombardear Dresden durante a Segunda Guerra Mundial, destruindo um centro cultural comparado a Florença, e tentando justifica-lo para lá do razoável.
Não mais inacreditável que mais de cem mil pessoas tenham morrido nessa altura mas Billy Pilgrim (como o narrador) tenha sobrevivido porque como prisioneiro de guerra estivesse numa estrutura subterrânea de um velho matadouro desactivado.
A realidade humana é tão absurda que é aprazível – e mesmo inevitável – para Billy acreditar numa outra realidade. Mesmo uma em que ele se tornou um animal de jardim zoológico fazendo sexo com uma esquecida estrela de cinema para gáudio dos extraterrestres que o levaram.
Como diz Rosewater, companheiro de hospital de Pilgrim, aos psicólogos, Eu acho que vocês vão ter de inventar uma data de mentiras novas, senão as pessoas simplesmente não vão querer continuar a viver. Parece-me evidente que seja o próprio Pilgrim a criar essas mentiras até que elas se tornam reais porque nelas acredita por completo.
Com a sua volubilidade Pilgrim pode regressar a Dresden ou de lá escapar, tornando mais aceitável para a sua própria consciência que aquele momento aconteceria sempre, não importa quantas vezes e porque ordem ele a viva.
Dresden não é apenas um tropeção numa vida de extraordinário valor ficcional. Esse é, de facto, o acaso comum que o narrador achou entre si mesmo e a sua personagem para que pudesse combinar realidade e ficção numa cadência que agarrasse o leitor.
O narrador queria ter escrito um livro sobre esse momento de guerra que presenciou, mas pouco conseguiria dizer porque um homem não vale pela sua sobrevivência. Por isso o seu romance de guerra é-o por portas travessas.
São muitos os episódios a contar e, no entanto, por mais extraordinários que eles sejam não se lembram tão bem como a ideia de Dresden arrasada.
O narrador penetrou-nos a consciência contando o muito que acontece entre o momento em que Billy Pilgrim se torna volúvel no tempo e o momento em que os pássaros lhe dizem Piu-titi-piru?. Porque tudo isso que se passou não supera a ideia de que num momento existem vidas a habitar uma cidade e no momento seguinte nada existe mais.
O que se diz sobre tal momento que possa ocupar mais do que uma linha? O que se diz sobre tal momento que signifique mais do que o silêncio?
Ou se diz o mesmo que os pássaros que se desviaram das bombas e depois regressam ou não se diz nada. Por isso, a narrativa deriva por todos os outros momentos de uma vida deixando a sensação desconfortável de que não se evitou falar desse momento essencial e definidor que apaga todos os outros.
Umas duzentas páginas humoradas a tons de negro profundo que amedrontam os leitores ao dizerem demais sobre as cem mil vidas desaparecidas “porque sim” por via de uma outra que sobreviveu e cujo riso que inspira não parece digno de ser ouvido – nem mesmo e somente pela nossa voz interna.
Kurt Vonnegut criou um livro delicioso e arrasador cuja estrutura é arrojada e deslumbrante e, nem por um momento, labiríntica.
Talvez seja caso para dizer que ele se tentou aproximar dos romances de Tralfamadore que descreve e cujas páginas eram lidas em simultâneo para criar uma imagem agradável. No caso de Matadouro Cinco, os género (Ficção Científica, Guerra ou Humor Absurdo) e as cenas baralhadas são usadas para atingir aquele extraordinário efeito final que não nos abandona.
Claro que, neste caso, a imagem literária final é extasiante enquanto a imagem humana final é dolorosa. Mas nenhum prazer é gratuito e nenhuma aprendizagem é totalmente dolorosa.
O momento em que lemos o livro é um momento entre tantos e é um momento que durará. Repertir-se-á permanentemente na nossa lembrança porque era inevitável que ocorresse desta forma assoberbada neste e em todos os momentos da nossa vida.
E é assim.

Matadouro Cinco (Kurt Vonnegut)
Bertrand Editora
Sem indicação da edição - Agosto de 2011
200 páginas

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