domingo, 29 de julho de 2012

O epigrama redentor

Tenho um problema com O Epigrama de Estaline que poderá ser essencial às considerações que se seguem. Embora tal problema não tenho impedido que fruísse da leitura, faço notar.
O meu problema relaciona-se com o estilo do livro que parece ser parte do destaque que ele merece, como a crítica do The Guardian destaca: ainda que não seja um thriller está montado como tal desnecessariamente.
Não conhecendo a obra de Robert Littell - embora me tenha ficado interesse nela - não afirmo que o autor foi incapaz de escapar a uma construção que lhe é mais confortável, mas suspeito disso (e, por isso, estou em crer que os seus verdadeiros thrillers terão vasto interesse).
Isto não quer dizer que a forma seja excelente. O jogo de vozes múltiplas no estilo de narração de entrevistas conduzidas pelo autor - que é a voz última do livro - é bem controlada dentro de alguns capítulos, mas é ostensivamente esquecida noutros.
Esses outros capítulos são aqueles em que é necessário apresentar informação complementar que as fontes ouvidas não poderiam conhecer, passando a usar uma voz narradora directa.
O que me traz a outro ponto, a presença de algumas personagens pouco (ou mesmo nada) importantes que servem a função de estar presente nos momentos em que mais ninguém poderia presenciar os eventos em torno de Osip Mandelstam e Estaline.
São personagens com vozes por vezes muito brevemente escutadas e com vidas pouco visitadas. Como Fikrit Shotman, antigo halterofilista e actual homem forte de um circo, um militante ferveroso que é preciso para aprender que é culpado de não saber o seu crime. Personagem que parece estar a mais no livro, até que no final surge a dar a informação ao líder da Mãe Rússia sobre o poeta com quem se cruzou enquanto estavam ambos condenados a trabalhos forçados.
Estas são falhas graves, recursos a que faltou uma maior exigência. Mas ao contrário do expectável, não levam a rejeitar o livro. Os seus méritos serão maiores ou, pelo menos, mais atractivos.
Desde logo porque as personagens são muito interessantes.
Algumas por serem reais e já nossas conhecidas - Akhmatova e Pasternak, além de Mandelstam - e qualquer visão da sua intervenção política e das suas relações literárias serem fascinantes.
As restantes porque, mesmo se algumas são desnecessárias por largos períodos do livro, são muito bem criadas - ou aproveitadas da realidade, consoante o caso - e têm pormenores memoráveis por via das contradições humanizadoras que as caracterizam.
Ainda acima disso, o que apaga qualquer traço de ressentimento permanente com a forma do livro e o torna numa leitura que tem de se iniciar e acabar no mesmo dia, é o fulcro da história entre o estadista e o poeta.
Um drama humano que por momentos é um combate antes de se tornar numa confissão emocionada.
Uma história de perda de parte a parte, com o poeta a derrotar-se a si mesmo com um poema pobre de intenções políticas ainda antes de Estaline o derrotar por via do seu sistema sensor. E o ditador derrotado pelo desejo inconcretizado de ler um poema a si dedicado por Mandelstam (que não aquele Epigrama que o ridicularizava).
Estaline que tinha todos os outros escritores - e demais artistas - a dedicar-lhe obras de louvor, apenas não a conseguia daquele que considerava o maior poeta da pátria. Quando o conseguiu, já não lhe interessava, havia coisas mais importantes no horizonte (a guerra!).
E acabou mesmo por ficar para a História o poema primeiro, o Epigrama que, mau ou bom, merece hoje - fui informar-me embora o livro deixe a indicação velada disso - ser lembrado como acto de coragem da denúncia da crueldade de que já era feito o regime. É menos um poema do que uma denúncia estilizada. Um grito que teria de ser sussurrado em segredo até poder ser ouvido abertamente.
Esta história dos desencontros dos desejos humanos entre dois homens de poderes e personalidades muito diferentes é tão intensa que, mesmo que devesse ter sido explorada de forma mais fechada sobre estas duas figuras em vez de como recurso para a revelação do nascimento do império ameaçador que seria a Rússia da segunda metade do século XX, salva o livro do falhanço.
A força do próprio episódio entre poeta e ditador redime a intervenção ficcional do autor.

 
O Epigrama de Estaline (Robert Littel)
Civilização Editora
1ª edição - Outubro de 2011
328 páginas

Sem comentários:

Enviar um comentário