Talvez não haja dado mais importante para abordar este livro do que o facto de María Gallardo estar listada como autora do mesmo.
Autora primeira e principal como a capa indica vivamente sublinhando isso mesmo no título, María - em letras grandes, todas elas maiúsculas - e eu - eu, o seu pai, um acompanhante menor ainda que o autor físico deste livro.
Miguel Gallardo só está a reconhecer que esta não é uma criação sua, mas antes uma tradução sua da vida levada - criada, portanto - por María.
A um ritmo muito próprio, este é o diário de uma existência em que o autismo influencia o mundo circundante mas não define a María.
O seu autismo parece a acentuação da estranheza que todos sentimos enquanto o mundo nos é estranho.
O autismo como a emoção vivida pela sensibilidade máxima. Olha-se para a reacção de María a estranhos, primeiro receando-os em excesso para depois os acolher (se eles quiserem dar-se a ela, claro) no seu mundo particular com um prazer que os toca, e percebe-se que é o mesmo que fazemos mas demoradamente, encontro após encontro. Para ela é uma questão de instantes.
Admira-se, por isso, a sua leitura vertiginosa dos outros. Como a sua memória para nomes até de pessoas que viu por instantes apenas.
Qualidades - ou, pelo menos, capacidades - que faltam a tantas das pessoas denominada como normais.
Merece por isso María a nossa atenção, uma aventureira de férias, suportando os perigos de aviões e autocarros com que nós nem sequer conseguimos sonhar!
Desenhado a preto com a emoção expressa pelo vermelho - o mesmo vermelho da camisola de María que a destaca na sua diferença como a de todas as outras pessoas - o livro lembra a energia com que Sempé animava as aventuras de Le Petit Nicolas.
A ideia de partida à descoberta de uma pessoa e de uma vivência cheia de pormenores extraordinários sai reforçada por essa associação. Mas não se trata somente de confissão, trata-se também de pedagogia servida como divertimento.
Já próximo do final o final apresenta um painel com os sintomas que estão associados ao diagnóstico do autismo.
Esse painel é funcional e objectivo, mas surgido depois de toda a narrativa das férias de María só serve para avisar que nenhum sintoma pode enclausurar uma pessoa na limitação de um rótulo. A riqueza interior desta rapariga de doze anos não é um sintoma, mas uma meritória característica da humanidade que a torna tal e qual nós, leitores.
O livro tem ainda uma vertente mais. Uma vertente terna que o leitor nunca poderá apreciar completamente.
Em certa medida o livro afasta-se da banda desenhada e aproxima-se do diário ilustrado, com páginas dedicadas quase em exclusivo a texto e outras à enumeração (ilustrada) das pessoas que passaram pela festa da María.
É assim o livro porque pretende ser uma memória desenhada, uma que María possa usar como os restantes pictogramas que a ajudam a regular o seu dia. Esta memória que o pai lhe oferece é a retibuição pela aprendizagem que ela lhe deu.
Estão lá os momentos em que ele receia o escândalo que María provocará - assim portando-se como as pessoas que a julgam com o olhar - ou em que ele é superado pela memória da filha quanto aos nomes das muitas pessoas que conhecem.
As confissões de tais momentos fá-las Miguel com grande humor, não se importando de se vilipendiar um pouco quando tal parece merecer.
Tal ajuda a apaziguar a consciência do leitor para o seu próprio comportamento errado, pois pelo riso auto-crítico melhor consegue ele relacionar-se com aquele pai a revelar a obra de arte que María cria vivendo.
María e eu (María Gallardo e Miguel Gallardo)
Edições Asa
1ª edição - Março de 2012
64 páginas
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