Com a procura pelo realismo policial a levar a que se virem os olhos sistematicamente para as letras nórdicas, esquecem-se outras paragens que guardam surpresas maiores do que o movimento editorial ainda permite encontrar depois de massificar os títulos dos descendentes de Henning Mankell.
Vale a pena olhar para perto da zona do nosso antípoda para descobrir que (pelo menos) já no final do século anterior produzia policiais de um determinado protagonismo da realidade do trabalho de investigação.
O livro foca-se na vida de uma esquadra de uma pequena comunidade australiana. Embora haja um detective principal, Hal Challis, cujo estilo e gostos servem de âncora ao interesse do leitor, não há uma redução do trabalho detectivesco a essa figura.
Tal como não há uma limitação do funcionamento da esquadra à investigação do serial killer que se começa a forma, rapariga morta após rapariga morta.
Os vários patamares de trabalho - e capacidade - policial estão em funcionamento simultâneo e os muitos focos de desrespeito pela Lei acabam por se enredar ao longo do tempo, complicando as respectivas investigações.
Assaltos a habitações vazias, vandalismo incendiário, protecção de testemunhas em casos de tráfico de drogas e os raptos de raparigas. Cada um destes incidentes começa por ser um caso separado e vai influenciar as questões levantadas sobre os restantes.
Mas o realismo não se vê apenas pela coincidência temporal destes casos, uma casualidade que a ficção leva muitas vezes ao exagero probabilístico. Vê-se na reacção que cada departamento tem à informação disponível.
Como o rolo de fotos do interior de casas colocadas a revelar. Os polícias de giro que as vêem usam da objectividade para as atribuírem ao trabalho da mulher que lá as deixou, uma agente imobiliária.
Se lá tivesse passado um detective mais imaginativo e afoito - na forma do próprio leitor já muito habituado a extrapolar a partir do mínimo de dados - teria concluído que era artimanha dessa mulher que também trabalha como advogada e representa alguns dos delinquentes da cidade.
Algo mais se passa dentro da força policial. Algo revelador dos muitos tipos de carácteres que têm de ser aceites.
Fotocópias circulam denunciando o comportamento bruto e abusivo de um dos polícias de giro. Havemos de descobri-lo tentando obter favores sexuais em troca de um fechar de olhos a uma infracção rodoviária.
Outro seu colega envolve-se com uma das vítimas que foi auxiliar, rouba droga da sla de provas para a contentar e ataca fornecedores locais para encobrir o seu próprio erro.
E o detective Challis envolve-se com a repórter que cobre as notícias criminais e que, contra a recomendação dele, publica as cartas que o serial killer lhe envia.
Livros de ficção com intenções verídicas saem quase sempre derrotados, mas neste caso não se trata de denúncia social do carácter maculado da polícia, trata-se da criação da personalidade de um sistema que é mais do que um detective carismático e inteligente rodeado de elementos anónimos.
A verdadeira personagem, com os seus muitos tons entre o preto e o branco, é toda a força policial e o seu funcionamento.
Isto sim é realismo, a criação de um sistema dinâmico onde a informação circula abundantemente mas gerando reacções de graus diferentes. Os erros e as vitórias da polícia a tempos diferentes para o mesmo pedaço de informação tornam credíveis os acontecimentos, ainda que levem o leitor a resolver vários dos casos por si mesmo muito antes do último capítulo.
O Homem-Dragão (Garry Disher)
Alfabeto
1ª edição - Junho de 2012
352 páginas
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