O cágado é uma boa escolha para traduzir visualmente o carácter agora intitulado de paciente - e antes de sereno - do povo português. Carácter que de tão paciente se tornou resignado apenas umas décadas depois de ter afastado a Monarquia de arma em punho.
Mais útil para o efeito crítico do livro é antropomorficar o povo todo por igual, das figuras de poder ao anónimo personagem que ocupa o espaço da rua. Assim não há quem possa escapar à paródia inteligente com que os autores tratam estes animais.
O País dos Cágados valoriza-se por ter um humor impiedoso. Se há coisa que não se vê nos autores é partiditarismo ou ideologia.
Tanto o povo e o seu pensamento, como os governantes e as suas decisões, estão sujeitos à ironia da sua transformação cagadal.
Isso torna o livro num compêndio rico da História tal como ela era escrita oficialmente mas também qual como ela era vivida na cabeça do povo.
Aquilo que se aprende com o riso generalizado é o grau de crítica que merecem todos os patamares da vida do país. Crítica a um modo de estar cuja incoerência tende a ser atribuída a uma bipolaridade de feitio: do pessimismo ao êxtase no tempo dum golo falhado, dum edifício construído ou duma revolução iniciada.
O que, verdadeiramente, se passa é que o período de festa excessiva que se segue ao período negro tende a ser usado para apagar os indícios de discordância com o novo regime vitorioso.
Os autores nada perdoam e a História dentro deste livro é escrita por quem nem venceu nem perdeu, mas assistiu de uma bancada priveligiada à permanente derrota transformada em vitória.
A actualidade do livro talvez seja ainda maior agora, com os perigos da crise a as inconstâncias políticas. Mostra que nada disso é novidade, como mostra que a memória é sempre curta.
A actualidade social do livro é maior do que nunca, graças também à resistência do seu humor.
Ainda eficaz por via dos seus trocadilhos afiados, piadas recorrentes ou pormenores irónicos, é um humor que é mais forte logo na sua forma.
Algo infantilizado para ser mais livre e mais didáctico, é um desenho que conforta o leitor (adulto) enquanto lhe dá uma ensaboadela à consciência.
Artur Correia recriou com qualidade o seu próprio traço do final dos anos 1970, conseguindo que a actualização do livro fosse visualmente coerente. No entanto, no restante, a actualização falha na continuidade que deverá ter procurado atingir.
O livro deveria ter continuado a terminar no painel da página 68. Ainda que antes dessa página haja actualizações, essas conseguem funcionar a contento por serem informação extra para a que já lá se encontrava.
As páginas que foram acrescentadas depois desse ponto (cerca de uma vintena) trazem o livro até ao presente num passo demasiado acelerado que toca apenas meia dúzia de temas maiores - leia-se mais mediáticos - do "mamarracho" do CCB tornado essência de Lisboa à vampirização da troika enviada pelo Fundo Monetário Internacional.
Estas últimas páginas são, contrariamente ao que seria lógico esperar, menos escorreitas do que aquelas que se demoram em detalhes (por vezes até demasiado específicos e, por isso, pouco relevantes) das vidas de personagens como António de Oliveira Azar ou Saraiva de Cágado.
Estas vinte páginas sofrem do mal de estarem a repetir - quanto muito, ilustrar - piadas de um tempo em que estas brotam minutos depois das suas matérias terem sido divulgadas. E que, ainda para mais, se espalham a uma velocidade ainda maior nas plataformas virtuais.
Não há melhorias significativas no Presente do país, nem nas páginas com que os autores o tentam mostrar.
Já o Passado que eles caracterizam é inesquecível numa aprendizagem que sabe ter graça, contrariando ideias de seriedade exagerada.
O País dos Cágados (António Gomes Dalmeida e Artur Correia)
Bertrand Editora
1ª edição - Abril de 2012
88 páginas
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