terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Criação de um mundo onde até cabe a nossa imaginação

Revendo a crítica a O Caso Jane Eyre não sinto que tenha feito justiça ao trabalho de Jasper Fforde. Isso ou não senti desde logo a extensão da criatividade do autor.
O mundo que ele criou é tão extravagante que será sempre coerente, porque tudo o que lhe ocorre cabe nos interstícios do mistério dos vários departamentos das Operações Especiais cuja função está ainda por revelar ou das combinações retro-futurísticas do ano de 1985 do livro em que é possível viajar tanto através do núcleo do planeta como através do Tempo.
As ideias criadas pelo autor dariam azo a, de forma isolada, sustentarem outros livros, de ficção científica, policial, sátira revisionista ou banda desenhada de super-heróis.
E criar é um verbo merecido pois é raro haver algumas dessa ideias que se sintam serem repescadas de outros meios, mesmo para eles remetendo.
Fforde, em vez de tentar fazer render essas ideias e sustentar uma carreira multi-facetada decidiu-se a criar um inacabável multiverso onde todos os seus disparates - pedaços de humor descabido e surrealista - podem ir ganhando espaço e diversificando um texto que, desde logo, tinha uma premissa extraordinária, sobretudo para aficcionados leitores.
Esta detective literária que vai conseguindo entrar nos livros, desta vez, descobre que faz, também, parte da Jurisficção, um departamento meta-literário cujos mistérios de maior monta ainda estão por revelar.
Este conjunto de agentes que são também personagens de ficção são uma das partes substanciais do livro, mas não a única e até demoram bastante tempo a entrar em cena.
São, no entanto, uma criação que poderia dar origem a uma outra inesgotável série de livros dedicados às acções secretas passadas no interior dos milhões de livros publicados (ou por publicar) ao longo da História.
Não parece que Fforde o vá fazer pois os seus propósitos são os de criar literatura agradável ao mesmo tempo que se relaciona com um público mais experiente - sem perder  descaramento de tentar listar os dez clássicos mais chatos de sempre em que pode ofender algumas sensibilidades canónicas.
Por mais ideias que Fforde tenha, por mais géneros que misture, não deixe de ser um dedicado escritor que se foca nos jogos de palavras, nas coincidências linguísticas, nos jogos com as estruturas do livro e nas referências literárias.
Um dos melhores episódios do livro é aquele em que Quinta-Feira Seguinte tem de enfrentar o Tribunal d'O Processo conseguindo dar a volta ao juíz até que o advogado de acusação é lançado para os calabouços. Tão divertido de seguir quanto a comunicação das personagens da Jurisficção através das notas de rodapé, uma sedutora novidade que adiciona funções a um utensílio tão comum e pouco pensado da lituratura e que aqui transforma a dinâmica da própria leitura.
Se há uma certa erudição neste género de invenções ficcionais, não deixa o livro de proporcionar uma leitura veloz e animada para outros públicos.
Para que sirva de exemplo deixo aquela que é para mim a mais brilhante das ideias deste livros, de uma gritante simplicidade e de uma gritante genialidade. Trata-se do entroposcópio, nada mais que um frasco de compota meio por meio de arroz e lentilhas que, quando as coincidências surgem em quantidades demasiado grandes, permite a Quinta-Feira avaliar o risco de vida que corre. Basta agitá-lo e se o arroz e as lentilhas se organizarem (em vez de se misturarem) então o caso é sério! Simples e por isso tão curioso. Absurdo e por isso tão divertido.
O simples vem de mão dada com o extraordinário e ainda que Fforde não arrisque, como Douglas Adams, dar-nos a resposta para a Vida, o Universo e Tudo Mais, dá mesmo assim uma nova visão da criação da vida na Terra com um delicioso sabor a morango. Mais exactamente da criação da vida naquela Terra em particular, uma de muitas para as quais a protagonista ainda poderá vir a saltar com inoportunas consequências que são desvendadas ligeiramente e que podemos dedicar-nos a imaginar sem que nunca tenham de ser exploradas a fundo.
Em parte somos todos criadores a par com Jasper Fforde que nos lega um universo onde as dúvidas sao tão produtivas quanto as revelações.

Não posso terminar sem dar nota da tradução. Uma tradução conscienciosa e eficaz mas à qual falta a noção do uso corrente e corriqueiro da língua inglesa.
Apesar de todo o humor do livro, é quase certo que no original este será substancialmente mais eficaz e mais diversificado.
Alguns exemplos gritantes dessa falha surgem ao longo do livro, tornado as expressões impraticáveis ou deixando passar jogos fonéticos, mesmo que intraduzíveis, sem qualquer referência de rodapé.
Do primeiro caso destaco na página 254 a frase o que me dava a sensação de estar a ler desenhos animados às escondidas durante as aulas na qual "cartoons" deveria ter dado lugar a tiras (dominicais).
Do segundo caso deixo dois exemplos por ser o que mais afecta a riqueza do texto. 
Quando é que ele vai fazer-te perguntas sobre Jack Schitt? (página 104) é uma tirada de duplo sentido em que há um desprezo para com a personagem que fica perdido sem o entendimento que Jack Schitt é foneticamente idêntico a "jack shit", ou seja, "merda nenhuma".
Mais tarde (página 274) o avaliador da detective avalia-a com um F. Não por acaso o seu nome é Flanker, a uma letra apenas de "flunker": aquele que reprova.
Possivelmente o público que, por si só, não consegue penetrar nos resquícios de inglês do texto e compreender este humor nada tem a perder. Mas a tradução só ficava a ganhar com mais "esperteza de rua".
Em sentido inverso não posso deixar de destacar a sedutora capa, desenhada por Ricardo Cabral, de quem já falei aqui com grande admiração.


Perdida num Bom Livro (Jasper Fforde)
Guerra & Paz
1ª edição - Janeiro de 2011
340 páginas

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