Nunca tive paciência para Anne Frank, sobretudo obrigado a ler o seu diário como exemplo desse género de escrita durante os anos de ensino obrigatório.
O único texto em que gosto de a ver como protagonista é esse certeiro pedaço de humor negro que diz o seguinte:
Anne Frank
Campeã Mundial do Jogo das Escondidas
1942 - 1944
Se comecei a ler este livro foi, precisamente, porque me referiram que ela não saía bem tratada dele.
É verdade que o livro não lhe é simpático, mas mesmo assim termina com um nobre acto em seu nome, uma redenção do verdadeiro protagonista deste relato num exagerado acto final que envolve um sacrifício contra um mártir terrorista com uma lógica ainda mais retorcida que o habitual.
Sem a Parte III, o livro teria acabado melhor, um pouco em aberto mas com a integridade do seu protagonista intacta.
Se tivesse terminado no momento em que Joop percebe que há culpa suficiente para distribuir por vários intervenientes e que ele não precisa de continuar a carregar a solo a culpa da captura de Anne Frank.
Afinal de contas, não fosse a sua traição e Anne Frank não teria cumprido o seu sonho de ser uma escritora publicada e reconhecida.
E não fosse isso, a Holanda não seria um país considerado como um dos poucos que tiveram um comportamento digno para com os judeus durante a ocupação nazi. Apesar de uns dez mil judeus escondidos durante esse período terem sido traídos pelos holandeses em troca de pequenas perspectivas de uma vida menos difícil.
Joop foi o Judas do comportamento holandês durante a primeira metade da década de 1940. Durante décadas odiado anonimamente por todos os admiradores de Anne Frank e até por si próprio, não fosse ele a colocar em movimento os acontecimentos que levariam à publicação do livro da jovem judia e a rapariga
Afinal ela escrevia no seu diário sobre como estar escondida era passar umas férias diferentes, queixava-se de ter de comer várias refeições de morango por ser o único alimento que o seu pai conseguia e preocupava-se excessivamente com o mau corte de cabelo que tinha feito e que Klaus poderia ver.
Ao mesmo tempo o pobre jovem Joop dedicava-se a todo o tipo de trabalhos durante o dia inteiro, fazia contrabando para conseguir comprar um ovo que adiasse a morte do pai doente e a sua preocupação passava consigo mesmo vinha apenas do sentimento de inutilidade que o assolava sempre que não conseguia um ovo para o seu pai.
Quem merece ser relembrado pelo seu sofrimento e esforço durante período tão conturbado? Para mim é óbvio, até porque os feitos de Joop revelam o quão difícil era a vida para todos os povos ocupados e esquecidos pela crueldade usada contra os judeus.
Se Joop não tivesse traído Anne, esta nunca teria sido o ícone que se tornou e eu não teria tido de ler o raio do diário que ela escreveu. Um diário que só tem interesse porque ela morreu, enquanto outros - de mais interesse, de mais valor, de mais talento... - morreram sem deixarem uma linha escrita.
Ainda para mais quando as sequências de maior personalidade e polémica do diário - aquelas em que revela as suas tendências lésbicas e o seu desabrochar sexual - acabariam de fora da versão com que nos ocupavam na escola, censurada na maioria das edições pelo pai de Anne que a queria como uma mártir impoluta. Uma personagem chata e fútil, portanto!
Claro que, nesse caso, também não teria lido este outro relato, com bastante mais valor literário e interesse enquanto saga de sofrimento e entretenimento na Holanda da II Guerra Mundial.
Fica ela por ela, embora me pareça que vale a pena suportar a omnipresença do diário de Anne Frank para ouvir Ricky Gervais dizer sobre Anne Frank que ela foi preguiçosa. Afinal tinha tido tempo para escrever um romance mas apenas deixou um livro que acaba um pouco abruptamente. E nem sequer escreveu uma sequela!
Uma Tulipa para Anne Frank (Richard Lourie)
Quetzal Editores
Sem indicação da edição - Setembro de 2005
228 páginas
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