sábado, 21 de janeiro de 2012

A nobreza do que é comum

Coração de manteiga é um título limitado que não se compara à sugestão do original La contessa di ricotta. Um título que sugere uma contradição entre o título e a sua substância.
Mais do que o coração mole ou as mãos escorregadias designados comumente como "de manteiga", é a classe baixa do derivado de queijo que define o verdadeiro grau da nobreza que esta condessa - e as suas duas irmãs - mantem.
Assim vemos no título original a sugestão desta simultânea mistura e aversão entre a riqueza do título envergado e a falta de valor daquilo sobre que o este "reina".
Afinal de contas moram agora cada uma num dos apartamento em que transformaram o seu velho palacete, que tentam recuperar como sinal da sua velha glória mas cuja traseira cai aos pedaços à medida que a fachada é reparada.
O retrato da aristocracia italiana não mostra a decadência que afecta a construção à sua volta, mostra antes uma existência hermética destas mulheres que têm as suas convicções fixas num tempo que já não existe.
Colados às suas paredes, os estranhos seres que habitam outros estratos sociais reforçam a presença de um mundo moderno que não as satisfaz.
Entre as irmãs, uma vive um idílio sexual mas sonha com um filho, outra - a Condessa de Manteiga - tem um filho de um homem que se juntou com outra mulher mas sonha perpetuamente com o amor, e a última irrita-se com a liberdade dos outros para não tratarem do jardim que ela quer ver em todo o seu esplendor.
A alternativa que elas querem recuperar é muito mais grandiosa mas igualmente constrita. Uma vida elegante mas que se tornou há muito numa natureza morta.
Afinal, é agora a plebe trabalhadora - um mestre-de-obras que as serve, ainda para mais - que colecciona peças desirmanadas de fina loiça por admirar a sua beleza, enquanto as três irmãs lutam apenas por preservar intacto o conjunto de seis chávenas que são herança - e condenação - perpétua da vida que pertencia aos seus antepassados e que não as deixa olhar adiante.
Quando o mestre-de-obras parte uma das chávenas penitencia-se fortemente mas a Condessa de Manteiga vinga-se nele partindo-lhe toda a colecção de valiosas raridades sem consideração alguma pelo valor do material que devia admirar mais que os outros.
As vidas das três irmãs e dos vizinhos ou trabalhores à sua volta, mais do que se tocam, mesclam-se de formas inesperadas, melancólicas e desesperantes.
Dão um retrato aprazível de como a moderna Sardenha - e toda a Itália, supomos - se tornou numa comunidade repleta de estranheza mas unida pela mesmo riqueza dos elementos artísticos, culturais e históricos.
Uma comunidade que transformou os jardins palacianos em pátios de convívio e que juntou condessas a operários.


Coração de Manteiga (Milena Agus)
Alfaguara / Objectiva
1ª edição - Junho de 2011
120 páginas

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