Não gosto que me digam na capa de um livro que este é o livro a ler se tiver medo da morte. Não por mim ou pelas minhas próprias considerações sobre a morte, mas porque entre a presunção e o intuito comercial não me parece que os leitores venham a apreciar que os tentem convencer com uma frase que parece feita para um livro com outras intenções.
Vou ser directo desde já, a morte foi o tema que neste livro menos interesse gerou.
Não a morte como estado, mas a morte como presença permanente na mente – do homem e do escritor – e como pergunta a com a qual ele se confronta a todos os momentos numa consciência silenciosa.
A busca de uma filosofia sobre a morte num referencial literário que tem no seu centro Jules Renard e (mais ainda) Michel de Montaigne é interessante pelo imenso domínio de conexões que estão presentes na biblioteca que cada um escolhe para si. Isso é uma visão da genealogia literária do autor e uma revelação para o leitor apenas de autores e ocorrências que tem ainda de descobrir por si próprio.
Mais motivador, porque debatível mas carregado com a experiência de um homem perspicaz com mais de sessenta anos vividos, é a conjugação de ciência e filosofia com que ele encara a morte e as possibilidades que estão para lá dela.
Dessa conjugação chegou de um crente ateísmo ao seu ponderado agnosticismo que lhe permite escrever tantas páginas cultivando a dúvida que suspenda - ou, quanto muito, acalme - a expectativa da morte.
Uma combinação de saber e reflexão que não estão para lá daquela que deveria caber a todo o Homem, por mais comum que se ache, mas que também só poderia ser alcançada pela acumulação de experiência e conhecimento de um leitor determinado com tantas décadas vividas.
Um homem que sabe, portanto, temperar as resposta ininteligíveis da vida - e da morte - com a sabedoria e a tolice dos mestres que o precederam. Tanto as citações que alguns grandes escritores e compositores (as duas áreas de criação que mais tocam Julian Barnes, embora toda a Arte lhe fale de alguma forma) deixaram como os episódios que protagonizaram e se tornaram piadas dão a Barnes material de apoio a enfrentar os medos sobre os quais escreve.
Mas um homem que não está para lá do comum no que toca aos seus talentos de filósofo mas que a tal se arrisca sempre com um receio de fazer má figura. Tudo porque o seu irmão é, sim, um filósofo "a sério" e a provocação só vai até ao ponto em que o seu ego não saia magoado.
Aqui chegamos ao tema que Julian Barnes domina com maior talento e transmite com maior interesse: a família.
Há muitos episódios e relações com os quais ele executa um malabarismo narrativo admirável, sobretudo no que toca às dificuldades existentes na relação dos seus pais e dos seus pais com os filhos, mas nenhum envolve o leitor com tanta habilidade e com tanto prazer como a rivalidade do escritor com o irmão.
Uma rivalidade não assumida mas sentida na articulação dos diálogos encetados entre ambos e na exposição das situações comuns.
Talvez seja o resumo perfeito dessa rivalidade e o indício mais claro de como Julian Barnes pode usar a família como temática mais feroz do seu livro quando revela que a sua mãe menorizou os talentos dos seus filhos afirmando que um escrevia livros que ela podia ler mas não conseguiria compreender e o outro escrevia livros que ela podia compreender mas não podia ler.
Sente-se que as relações familiares - em grande parte autobiográficas, ficará o leitor a crer - constituem o tema cruelmente delicioso que Barnes tem para moldar através da sua caneta.
Por isso, não é pelo medo da morte que devemos ler o livro mas pela percepção do que há a temer na vida. Falo da família, claro, e de como esta guarda um conjunto de surpresas tão obscuras e tão desagradáveis como a morte que está por chegar.
Preocupemo-nos, pois, com aquele estado em que já nos encontramos, a vida.
Nada a Temer (Julian barnes)
Quetzal Editores
Sem indicação da edição - Maio de 2011
288 páginas
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