domingo, 26 de julho de 2015

Para acompanhar o que veio antes

Creio não se poder dar melhor elogio a um livro que não marca a primeira aparição do seu personagem principal do que este: deixou-me ansioso para ler todos os que o antecederam (e os que se seguirão, já agora).
Rui Araújo tem esse talento, de criar um personagem culto e arguto que dá vontade de acompanhar sistematicamente.
Um detective ao jeito daqueles que marcam a memória dos policiais que se têm por favoritos, ou seja, daqueles que transformam um crime num relato da sua própria intervenção.
O inspector Miguel Neves é desses, dos que marcam pelo que trazem, mesmo da sua vida privada, para a construção de uma história em que ele - e os personagens que o rodeiam - importa. Não se limita a ser um narrador que faz avançar a trama de um ponto de resolução ao seguinte.
Há que dizer que o processo de resolução é bastante detalhado, trabalhado como aquilo que, crê-se, é o método policial em vigor neste país.
Afinal estamos no campo da ficção que recorre a uma história verídica como base de trabalho que permita tornar a leitura engajante e, no final, deixar algo à consciência.
Nessa combinação de realismo e ficção, Rui Araújo usa as transcrições de interrogatórios ou as circulares de serviço de forma credível mas também muito escorreita.
Esses atributos são essenciais para um livro breve mas que, além do fio policial explora a personalidade do inspector, dando-lhe espaço para exibir a sua cultura - uma agradável extensão do autor, por certo, que já abrra o livro com o poema Farewell de Alexander Search/Fernando Pessoa como epígrafe - a par das suas relações pessoais, que confundem os meandros da sua mente investigativa.
Miguel Neves está casado com Tânea Sanz, jornalista de investigação que aponta o seu faro na direcção dos crimes de colarinho branco ligados a várias posições de Estado.
As ameaças que surgem podem ter origem no caso de qualquer um deles e o inspector terá de ser interventivo em ambas as descobertas para afastar o perigo que os ronda.
Esse perigo é um agradável tempero do livro, que nunca afasta por completo o seu protagonista dele, aliás deixando-o ir na sua direcção.
Não temos um herói em Miguel Neves, antes um homem cujas decisões deixam algo a desejar tanto no campo do planeamento das acções como da avaliação moral das mesmas.
Com isso o livro termina com um cliffhanger de verdadeira incerteza sobre se teremos um próximo volume dedicado ao inspector. Embora a racionalidade diga que assim será, é a esperança que o afirma com mais força.
A tragédia não parece ser inédita para o inspector. Percebe-se que no seu passado houve já a perda de outra mulher amada.
Isto revela não só a coragem do autor, mas também a inteligência com que torna conhecido o passado do seu protagonista para os novos leitores, integrando-o na narrativa para garantir contexto suficiente, sem escrever uma introdução que torne redundante a leitura dos seus outros livros.
Tudo isto combinado leva ao desejo que expressei logo de início, de acompanhar as investigações de Miguel Neves que já foram ficando para trás. Prometem e muito!


A Tentação do Abismo - Sanz Blues (Rui Araújo)
Gradiva
1ª edição - Fevereiro de 2015
196 páginas

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