sábado, 18 de julho de 2015

Literatura é reconciliação

Este é um melodrama de relações familiares que se transformam quando um casamento termina, demasiado realista por conta da estupidez humana que se torna abnegada de qualquer sentido de decência.
Amor entre marido e mulher rapidamente transformado em ódio que só se dá por contente quando destrói a outra parcela destas relações, o amor entre progenitor e filho: esse amor que deveria ser protegido e, se possível, incondicional.
Só que este melodrama não se rende à narração "de faca e alguidar", procura esse ponto mais raro e mais importante em que a destruição da família é confrontada com o reencontro dos seus elementos.
Esse instante serve para contar uma história que é, de facto, de um absoluto, quando ao fim de muitos anos de não ver o filho, um pai afastado à força prepara-se para o receber em casa.
O pai recebe-o com amor e apenas amor. O filho vem para atacar, preparado para um combate onde crê saber - sem espaço para a dúvida - qual o lado dos bons e qual o lado do mau.
Um combate travado com palavras e gestos que o filho vai tentando ferir o pai que resiste, sempre, pela força do seu amor.
Até ao momento em que até o amor a um filho dá lugar ao amor a si mesmo. O pai replica, não em retaliação, num gesto limite de auto-preservação.
Ou melhor, de preservação da dignidade do pai que sabe ser e que apenas conseguiu mostrar durante pouco tempo ao seu filho.
O combate entre os dois transforma-se em transformação própria.
O pai descobre que ainda tem em si uma centelha que lhe dá valor, depois de tanto tempo em que desistiu da vida, para ver que o amor é dádiva permanente mas não pode causar o esgotamento do ser que o sente.
O filho descobre que as certezas do seu ódio não correspondem à verdade límpida, tendo de amadurecer e enfrentar a realidade da sua própria culpa naquela relação falhada, sujeito que foi a uma manipulação.
Isso antes de entrar em cena a terceira personagem desta família. A mãe, cuja morte é o motivo pelo qual os dois se encontram.
Ela materializa-se pela carta que o filho leva ao pai e que pode considerar-se um retrato das ilusões raivosas com que alguém molda as memórias do seu passado para, assim, se justificar e se expurgar de erros próprios.
Embora também seja um relato que levanta dúvidas sobre o que verdadeiramente aconteceu entre os elementos daquela família.
Há um homem cuja entrega ao filho nos merece empatia. Ele é o mais perto que o livro está de ter um herói, mas nem mesmo o seu relato é totalmente objectivo.
Por isso mesmo o livro não termina de forma límpida, antes deixa margem à projecção de desejos que cada leitor fará a partir dos seus sentimentos individuais.
A única certeza é a que o narrador do livro reconquistou algo de si mesmo ao aliviar a emoção que guardou tantos anos.
Por pudor pessoal de falar da sua mágoa perante uma sociedade patriarcal. E, sobretudo, por pudor do seu filho a quem não quis impôr mais uma narrativa de acusadores e culpados.
O livro não termina "em bem" mas tem um momento marcante em que o diálogo se torna possível.
Acontece pelo poder da Literatura, que acaba por ligar os dois homens e, num encontro de gostos, quase os reestabelece como pai e filho.
A Literatura é, aliás, a outra grande personagem do livro, destacada e homenageada pelas muitas referências que o narrador faz às obras que julga meritórias.
Referências essas que surgem na forma de (muitas) notas de rodapé, apartes no encadeamento lógico do narrador. Que acabam por ser confissões do escritor que nesses elementos do livro vê as suas opiniões confundirem-se com as do personagem.
Jorge Araújo trabalhou a forma do livro de forma muito inteligente e com o conhecimento de utras experiências literárias modernas. Trazendo a experimentação para um patamar onde se torna acessível e convidativa a todos os públicos que o seu livro possa encontrar.


O Cemitério dos Amores Vivos (Jorge Araújo)
Clube do Autor
1ª edição - Fevereiro de 2015
150 páginas

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