Perante um livro em que a sua autora colocou uma intenção política muito intensiva, a dificuldade está em libertar-se dessa carga para pensar o restante.
Até porque a intenção política, de consciencialização do genocídio Arménio de há cem anos atrás, é o mais interessante do livro, debatido entre uma jovem Americana de ascendência Arménia, a sua prima Turca e o grupo de personagens (entre o intelectual e o pretensioso) com que esta última se dá.
As discussões são muito informativas, pelo menos como ponto de partida para o tema, embora literariamente sofram precisamente por isso.
Os discursos não são naturais nem fluidos, valem pela sua composição que tem maior sentido como texto argumentativo do que como diálogo tertuliano.
Sendo isto o mais interessante do livro, não se pode afirmar que seja o seu núcleo. Aliás, a dispersão do livro é um dos seus grandes males.
Veja-se que estamos perante uma história melodramática em torno de quatro gerações de mulheres, parte de dois povos - Turco e Arménio - a braços com a clivagem de gerações que se cruzam num mundo aberto à modernidade - a (promessa da) Europa e os Estados Unidos da América, respectivamente.
História salpicada pela tal consciência política mas, também, por um realismo mágico que enreda (sem grande sucesso) loucura e magia.
Trata-se de um livro contado com um arreigado feminismo, que se "livra" dos homens dando-lhes mortes precoces ou fazendo-os fugir desse destino.
Infelizmente, entre tantas personagens femininas, só as duas adolescentes são devidamente caracterizadas, servindo as outras como receptáculos de características cuja pontual irradiação ajuda ao avanço da trama.
Isto inclui até mesmo um excesso de conveniência como é a aparição de um Jinn com conhecimentos que passa à mulher a quem está agarrado.
Esses conhecimentos revelam o segredo negro que afecta a mãe da "bastarda" e que vilipendia por completo o único homem digno de referência dentro deste romance de mulheres.
O segredo não é difícil de perceber - ainda que me possam acusar de ser um leitor tétrico - desde os capítulos iniciais do livro.
Os momentos em que a autora escreve de vários pontos de vista sobre acontecimentos com dezanove anos e um oceano de distância são aqueles que dão certezas de que as linhas da história não só se vão encontrar, como vão chocar com violência.
O desvio pela substancial diferença entre as memórias de Turcos e Arménios para um mesmo e terrível evento, bem como a diferença em como lidam com ele, adia a descoberta dessa falta de imaginação da autora.
Só que o desvio também obriga a autora a recorrer ao Jinn ex machina para voltar à história que tem de contar para que o romance se componha.
Para que se leve o livro até ao seu final sem desistência vale a escrita da autora que fala de Istambul com honorável poesia.
E, no meio de tudo o resto, uma curiosa história de coming of age em contextos intensos que deixaram, pelo caminho, de ser exóticos para o público português.
A Bastarda de Istambul (Elif Shafak)
Jacarandá
1ª edição - Janeiro de 2015
372 páginas
Sem comentários:
Enviar um comentário