quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Problema de escala

Robert Harris é um excelente ficcionalista da História, capaz de criar interesse até num episódio desconhecido e cuja relevância parecia escassa para este leitor.
O seu trabalho de transformação da espessura da investigação num escorreito relato é tao eficaz que consegue fascinar o leitor ainda com poucas páginas lidas.
A sua exploração desses erros imensos que os homens tentam esconder na sua pequenez mas que marcam a memória da Humanidade é feita com a perspicácia de quem está a desvendar um mistério à medida que escreve, embora o desfecho lhe seja já familiar.
O genuíno interesse do autor pelo tema transmite-se ao leitor e permite-lhe arriscar fazer mais do que meramente recontar o Passado.
Através dele permite ao autor julgar o Presente e afirmar a persistência nos actos menos nobres.
Mostrando que no século XXI se repetem as mesmas estratégias indignas do século XIX, com os "espiões" a manipularem informação para justificarem os seus preconceitos, a interpretarem a realidade consoante quem queiram que ela sirva e a contornarem os mais primários conceitos da Justiça em favor das suas próprias intenções.
A única mudança foi a escala, naquela altura estando acusado um homem (mas um representante de todos os judeus, já vilipendiados) e por estes dias estando acusados povos inteiros.
O escrutínio ficcional dos métodos de então adiciona sentimentos à análise objectiva do que correu mal (eufemismo para a intencionalidade do erro humano), intensificando o espanto pela tão longa demora até ao surgimento de um paladino casual em defesa de um homem tão evidentemente inocente.
E até mais do que a demora, a falta de inteligência de tantos para interpretarem a informação à sua frente com correcção, o que reforça o medo de que estejamos sempre sujeitos à interpretação errónea de um qualquer bem intencionado funcionário: patriótico mas pouco inteligente!
A História pela pena de Harris é um romance sábio que transforma o Passado no prenúncio do Futuro.
Aquilo em que Robert Harris não é excelente - e por vezes é até sofrível - é no seu trabalho com os personagens centrais.
Valha a verdade que a amostra é pequena até agora, com apenas um outro livro lido além deste, mas os problemas são os mesmos, a escolha de um ponto de vista que não é o mais benéfico a longo prazo e a incapacidade para transformar o personagem que nos conduz numa figura que ganhe corpo a partir da folha.
Picquart, o militar/espião que aqui luta pelo reconhecimento da inocência de Alfred Dreyfus que ele próprio foi capaz de fazer, atravessa o livro sem se destacar por um traço de personalidade mais vincado.
Em certos momentos é um amante apaixonado, noutros um militar que deseja a elevação do Exército que integra. Chega mesmo a ser alguém com uma relação exageradamente perspicaz para com o homem acusado de traição.
Não era necessário que ele surgisse como um mártir (que em parte foi) ou um herói, apenas como alguém com uma razão interior precisa para a forma como encara esta sua missão.
Esta sua adaptabilidade constante, que serve as necessidades da trama e as alterações de contexto de cada momento, nunca lhe permite coerência - que não se deve confundir com imutabilidade - existencial.
Aliás, se há um traço do seu carácter que parece persistir com o leitor é o de indiferença final para com tudo o que faz, como se fosse um sociopata funcional. Pena que não seja intencional.
No final do livro, quando os eventos já se esgotam, Picquart não se mostra capaz de levar o leitor adiante. Os últimos capítulos têm o peso de uma obrigação.
Esse desequilíbrio entre a personagem que é o próprio corpo da História e a personagem que é apenas a condutora do livro é o que impede que estejamos perante uma obra imprescindível.
Talvez esteja a ser por demais exigente, mas apesar do meu interesse em Robert Harris ter aumentado com mais este livro, sinto que ele ainda não cumpriu com o que vais deixando antever ser capaz.


O Oficial e o Espião (Robert Harris)
Editorial Presença
1ª edição - Junho de 2014
496 páginas

1 comentário:

  1. Belíssimo post! Obrigada pela partilha :)
    De Robert Harris só li ainda "Pompeia" (2003) , mas tenho curiosidade em conhecer melhor "O oficial e o espião".
    Boas leituras!

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