Perante uma premissa pouco habitual como é a de contar o processo de preparação de uma mulher para o parricídio - e não de dar o protagonismo a um assassino, algo que mesmo em Portugal já foi feito - o interesse é natural.
O processo de convencimento de si mesma, a experimentação com métodos de morte e a pesquisa amadora de como proceder para não ser descoberta são os momentos de enorme interesse que exalam um realismo importante para sustentar essa linha mais exagerada do livro contra o seu pano de fundo assente na realidade quotidiana.
Para chegar do impulso inicial à planificação eficaz, a protagonista utilizará o método que é o mais óbvio porque é o único de que é possível lembrarmo-nos: o recurso à ficção sobre assassinos (neste caso com prevalecência e Dexter).
Sem dar à protagonista acesso a um assassino profissional com desejos de tomar para si uma aprendiz, a autora consegue manter credível esta sua exploração da violência doméstica a partir do ponto de vista da libertação pela vingança - e libertação porque superação seria uma avaliação demasiado ousada.
Conhecemos tal violência pelos olhos da mulher que quer vingar-se dos maus tratos do pai, que quer honrar a mãe que não conseguiu proteger antes, que quer salvar os irmãos mais novos ainda sob o domínio daquele homem e que quer proteger a madastra que agora vê sofrer no papel que fora da sua mãe.
Esse aspecto torna-a digna do nosso entendimento e da nossa solidariedade, levando-nos a aceitar dela uma situação cuja moral é intencionalmente dúbia e a cuja ilegalidade é clara.
Por isso mesmo toda a trama paralela de resolução de um crime em que ela se envolve, e que pretende reforçar a ideia de uma subjugação social das mulheres pela violência, surge como um acréscimo desnecessário.
A trama policial está elaborada de forma razoável e obriga a que a protagonista e a sua colega jornalista mostrem talento ao mesmo tempo que uma detective - que tem uma atitude de antagonista mas que acaba por delas se socorrer - se mostra muitas vezes mais comprometida com os seus ressentimentos do que com o seu trabalho.
O mistério apenas satisfatório acaba por roubar o foco da autora para os momentos melhores do livro que são aqueles em que há um relatório na primeira pessoa dos esforços infrutíferos e das pressões inesperadas que a protagonista tem para aprender a ser uma assassina pela via de uma certa cultura popular.
O policial atrasa - e rouba páginas - ao thriller de terror psicológico que tem um interesse adicional por haver a pressão do pai sobre a filha - contado em recordações - e por haver a pressão da mulher sobre ela própria - não só para cometer o crime num apertado período, mas também pela forma como mina a sua própria felicidade -, criando-se assim uma situação mais interessante a pedir uma análise dos efeitos da violência que as vítimas perpetuam em si mesmas.
Como a investigação policial apresenta duas personagens adicionais que deveriam ter um destaque equiparado ao da protagonista se a ideia fosse que todas elas representassem uma dimensão diferente do combate contra a opressão masculina (mais do que violência doméstica).
Só que o verdadeira cerne do livro é a história de como uma filha se prepara para assassinar o pai e isso reduz as outras duas mulheres a pouco mais do que estereótipos representando outras versões de subjugação que, mesmo assim, obrigam a desvidos à principal orientação do livro.
Apesar do caminho paralelo de ambas as histórias que se aproximam - não se sente que se toquem de verdade - no final, o livro está partido entre elas, com o assassinato por resolver a diminuir o alcance do assassinato por executar.
Quando o Ódio Matar (Carina Bergfeldt)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Junho de 2014
384 páginas
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