Iniciando-se a leitura de Greve a ideia que logo temos é de que estamos perante uma brincadeira fácil, daquelas que todos seriam capazes de criar caso a isso se dedicassem.
Claro que antes de a tal se dedicarem seria preciso nela pensarem, o que é o grande momento de génio de qualquer obra admirável.
No caso deste livro o momento de génio não se restringe a alcançar a ideia deste livro, vem ainda mais da insistência cumulativa do jogo feito com as muitas aplicações da palavra "ponto".
Catarina Sobral vai buscar muitas referências que a memória não produz facilmente e trata-as na procura de superar as convenções óbvias.
O acumular de referências linguísticas é mais do que matéria da imaginação, é a matéria-prima de um labor de escritora em busca de encontrar novas possibilidades dentro da tradição da Língua Portuguesa.
O contacto popular e oral com a Língua é assumido como complemento de inovação para os usos escritos da mesma, como que querendo preservar e perpetuar a inventividade que pertence a todos e que, neste caso, tem a vantagem de se dar de forma mais simples e que todos reconhecem, com a perspectiva de o fazer tanto para um público mais novo que ainda se molda à Língua Portuguesa e para um público mais velho que aprecia as suas possibilidades.
Um trabalho técnico de escritora que Catarina Sobral complementa com um trabalho de artista, fazendo com que as imagens superem as barreiras que as palavras encontram no seu caminho.
Nesse campo, a ideia de uso dos recortes que dão forma às cenas assemelha-se à usada nas palavras: os novos significados das imagens acrescentam aos significados anteriores das suas partes.
A "tradição" aqui é tanto a origem do material, que permanece visível e inalterada e apenas moldada a novas formas, como as referências dessa tradição da colagem, daquela inevitável que são as obras de Georges Braque no início do século XX e até aquelas da animação seja Terry Gilliam ou Zbigniew Rybczynski.
A conjugação de escritora e ilustradora é perfeita neste livro, fazendo de Catarina Sobral uma autora de uma identidade só.
Isso é mais visível na maneira como trabalha o livro como um todo, objecto de expressão que supera as ideias estabelecidas sobre o mesmo (algo que é habitual nas edições Orfeu Mini que entretanto foram lidas por aqui).
Trabalha-o desde algo tão "simples" como a brincadeira consigo mesma feita na contracapa do livro a algo tão "complicado" como a inserção do frontespício e da ficha de refência nas próprias páginas ilustradas do livro.
Pode dizer-se que se trata do reconhecimento das páginas e espaços do livro normalmente reservados a informações técnicas ou informativas como matéria de uso para corte e colagem global da forma do próprio livro.
Catarina Sobral consegue-o e nunca aliena o leitor no processo. O leitor é acolhido e acarinhado no seio do livro e encontra mesmo um desafio no Post Scriptum.
Esse funciona como o lançamento de um outro livro, uma sequela autónoma que a autora (provavelmente) nunca pretende escrever.
Trata-se de um repto ao leitor, para que este invente agora o seu jogo de linguagem, que se torne um autor (à sua escala) e amante da Língua.
Assim ela poderá seguir adiantes criando outras obras, mas legando a cada leitor - e, novamente, aos mais novos primeiro - uma independência da imaginação.
Greve (Catarina Sobral)
Orfeu Mini / Orfeu Negro
1ª edição - Outubro de 2011
52 páginas
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