terça-feira, 19 de maio de 2015

Romancear com a Morte

Pode ser escrito um romance que se passa durante uma epidemia tão terrível que quase dizima a totalidade da população europeia.
Um romance digno por ser tecido com enorme domínio, em tons discretos mas perto de se tornarem fascinantes. Entre um cangalheiro  e uma professora.
Um cangalheiro a braços com a constante falta que rodeia a Gripe Espanhola. Da falta de carroças para transportar os caixões à falta de madeira para os cosntruir. Mas sobretudo a falta de consciência das autoridades para a enormidade do que se passa e de que só o falhanço dos serviços pode dar conta: dos médicos, dos padres e, finalmente, dos próprios cangalheiros.
Uma professora sem o profundo sentido maternal que era esperado dela, que por ter de cuidar da sua irmã não consegue ser apoio para mais ninguém naquele tempo de morte.
Encontram-se para serem amigos, para terem alguém com quem conversar. O fascínio mútuo é quase tão intenso quanto a sua propensão para terem atitudes que  os levam a afastarem-se mutuamente.
No entanto é a sociedade à sua volta que mais os enfrenta, censurando aquela relação entre estatutos sociais tão diferentes.
Ele não está ao nível dela e tanto o seu empregado como as suas irmãs o censuram. Ela rejeita tais noções antiquadas e até faz com que a sua criada durma no mesmo piso que ela para sentir menos solidão.
Pois se ele se refugiava na música, tocando piano mesmo quando deveria estar focado no trabalho, ela encontra menos escapatória aos limites que a sociedade lhe impõe.
O romance entre eles faz-se por não ocorrer nada que o trace. Eles não procuram momentos secretos, encontram-se às claras para garantirem um ao outro companhia.
Afinal as preocupações pessoais nunca desaparecem, mesmo no meio de um evento que muda a face do globo.
Torna-se interessante que seja quase em paralelo que o livro traça o peso que recai sobre cada uma destas pessoas e que as atrai uma para a outra na busca de consolo.
A ele pesa-lhe, mais do que os mortos, a responsabilidade que tem em mãos de avisar as autoridades e garantir que elas tentem o impossível, impedir o regresso dos soldados a casa.
A ela pesa-lhe uma irmã paranóica capaz até de uma greve de fome que a vai condicionando até aos limites do ridículo. 
Uma pessoa que vive é tão importante quantos milhões que morrem. E, por outro lado, é tão destrutiva da resistência humana quanto elas.
Cada situação precisa de consolo porque à escala individual é comparável, embora nunca o possa ser à escala humana.
Tal como isso é válido para Henry e Allen, assim é para os que os rodeiam, que nunca deixam de julgar o romance entre classes sociais embora a sua mente só devesse estar ocupada com a mortífera pandemia.
Resulta num romance bem controlado em que a escala global e a escala pessoal se unem sem dificuldade.
Reina James conseguiu escrever, com bom gosto, um romance proibido numa retrógada sociedade de classes em que o contexto história não se transforma em pano de fundo nem se torna no elemento esmagador da história.


Epidemia (Reina James)
Publicações Dom Quixote
1ª edição - Janeiro de 2007
344 páginas

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