Um estranho lugar para morrer não é um thriller embora paire em torno de alguns conceitos da estrutura do género que ajudam a encaminhar aquilo que o livro na verdade é: um trabalho de imersão num personagem em igualmente medida hilariante e melancólico.
Sheldon Horowitz é um velho de uma rabugenta ferocidade que aceitou mudar-se de Nova Iorque para a Noruega para estar perto da única família que lhe resta, a sua neta.
Alienado por um país onde tanto a Cultura como a Língua lhe parecem bizarrias, Sheldon rememoria o seu passado, sofrendo ainda mais por isso.
As suas afirmações sobre ter sido um sniper na Guerra da Coreia contrastam com as histórias passadas de não ter passado de um secretário de guerra e fazem a sua neta desconfiar de que está a ficar senil.
O leitor tem a mesma dúvida a propósito de Sheldon, porque a par das descrições vívidas que Sheldon faz dos seus tempos de sniper, há nele uma hesitação mental decorrente da velhice e que coloca tudo em causa.
Esse dúvida alimenta o interesse imediato por Sheldon, a par de um corrosivo humor que ele lança nas suas linhas de diálogo.
O equilíbrio entre as memórias, descritas de forma eximía ao ponto de serem envolventes, e os diálogos, escorreitos sem deixarem de ser propícios à idade do protagonista e ainda com um carisma próprio do seu americanismo, é um dos méritos maiores do autor.
Derek B. Miller tratou aqui de criar um personagem que se revela memorável ainda nem dois capítulos decorreram, daquelas que se tornam mais importantes do que a trama em que se inserem.
Um personagem com uma vida interior complexa (e credível) que supera em muito a vida que possa haver à sua volta - e que há, em abundância, ou não estivéssemos numa forma de thriller.
Tanto que a sua opção por resguardar e depois fugir com o filho da assassinada vizinha de cima tem mais do que uma explicação. E essas vão do estritamente pessoal ao abrangente domínio da consciência histórica.
Por um lado a incapacidade de Sheldon lidar com o próprio filho sem ser ao incutir-lhe um sentido de dívida para com o seu país - que pagará com a vida!
Por outro um sentimento de recusa de ser como os outros Europeus que se deixaram ficar atrás de portas fechadas enquanto o seu povo era levado para o extermínio.
Todas as razões que traçam um espectro de ligação entre estas duas motivações vão surgindo na cabeça de Shledon à medida que vagueia com o miúdo.
Ele que sentiu ter falhado o seu tempo de ser alguém por inteiro ao não ter podido participar na II Guerra Mundial, reclama para si uma batalha em que serve a causa justa.
O que se segue é em parte coragem e sabedoria, é em parte devaneio e tontice. A sua fuga com o miúdo tem momentos onde a lógica faz o seu papel e outros em que a rendição ao absurdo (como vestir o miúdo como um Viking Judeu) também surte o seu benéfico efeito.
Daí resulta que a fuga seja, também, aventura. Boa parte do percurso - e do percurso de leitura - faz-se como se de um avô e neto em passeio se tratassem, já capazes de se entenderem sem uma plataforma de comunicação.
O caminho que dois elementos com idades tão díspares faz é cómico e comovente em doses certas, distribuídas pelos momentos mais ajuízados para tal.
Pela mão de Miller, o que era excesso e impossibilidade torna-se parte da personalidade de Sheldon e uma pista mais para a verdade da sua existência.
Quando tudo se resolve, a excitação maior não é das cenas escritas mas de estarmos perto de compreender por inteiro Sheldon.
Esta é uma obra de contenção onde um personagem se torna o próprio motivo do livro, expandido-se numa complexidade que faz valer uma vida de mais de 80 anos e que entendemos plenamente nesta narrativa de alguns dias.
A seu lado estão outros personagens interessantes, como os inspectores da polícia que lhe poderiam demonstrar a coragem a e perspicácia que ali existe.
Só que o livro é todo ele de Shelton, uma figura que os bibliófilos terão prazer de acrescentar ao rol de heróis improváveis e seres literários que vivem bem para lá das páginas.
Um estranho lugar para morrer (Derek B. Miller)
Edições Asa
1ª edição - Outubro de 2014
304 páginas
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