Um ditador narra num fluxo de consciência alucinada a sua visão de ter deitado cá para fora um país por inteiro.
Deitou cá para fora, assim mesmo, já que o ditador crê que tudo provém do seu corpo, sobretudo do sistema urinário, mas também por via do vómito ou do sémem.
Saem dele as maravilhas que levam o país - Africano, não nomeado, mas de suspeita fácil - para diante, ainda que a sua visão do local não deixe de ser comandada por uma noção de pequena escala, de aldeia fechada na redoma de um globo que agita na mão para ver cair os flocos das suas fantasias que criam vida.
Sem ele e para lá dele, nada daquilo pode existir. Ele é uma alma sacrificada à existência de todos, seja qual for a sua respectiva classe profissional.
A sua bondade é enorme, o seu dom criativo é inigualável. Mas ele não esconde o seu próprio prazer em mandar.
Tudo lhe está submisso, porque tudo lhe provém do falo. Tudo é urinado para fora do seu corpo e para dentro do país.
O ditador desfaz-se a pouco e pouco para que o país se encha. Por isso é que ele está doente, cancro da próstata.
Só que ele só admite desfazer-se por dentro enquanto o que vier cá para fora se lhe submeta. Ou melhor, se submeta ao seu falo, a sua obsessão permanente.
O falo é a extensão da criação e aquilo a partir do qual cria a ilusão de que se convence.
A sua visão do país é uma concepção que só existe na sua mente, um erro feito de arrogância e falta de discernimento. E do falo mais a sua produção!
O país tal como o conheceremos pela mente do ditador é um "falocia", parte falo parte falácia, uma afirmação falsa porque baseadas em todos os pressupostos errados e subjectivos.
A descrição que o ditador faz é um delírio, alimentado por uma aproximação do fim da vida, numa revisão do que ficou para trás que não deixa de ser alimentada a arrogância.
No seu excesso metafórico - se de metáfora se pode falar, quando não há qualquer subtileza na comparação da criação de tudo à constante excreção por via do falo - a descrição do ditador tem uma beleza que nos seduz.
O choque é brutal. A linguagem e a imagética venceram a constatação da violência da realidade ali contada, de um homem que domina tudo e todos pelo falo.
A submissão alheia descrita com arrogância e deleite está transformada numa saborosa cadência de palavras.
A consciência - se é que se pode chamar como tal o tipo de discurso que aqui ocorre - de um homem vil a convencer-nos a estar próximos do poder e a partilhar com ele a excitação das suas acções censuráveis.
O discurso do ditador é um feito, livre de perspectivas alternativas, livre de amarras a um realismo digno de indignação.
A onda em que se torna o discurso torna simples o envolvimento com o mesmo e complica a análise objectiva que dele é necessária ser feita.
Trata-se de uma armadilha, convincente, em que o leitor cede - como o povo, como o próprio ditador - ao chamariz do poder e da sua expressão escatológica, de arrogância fálica.
O Ocaso dos Pirilampos (Adriana Mixinge)
Guerra & Paz
1ª edição - Maio de 2014
200 páginas
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