domingo, 12 de agosto de 2012

A coluna vertebral americana

A América profunda deteriora-se a pouco e pouco, desfazendo-se muitas décadas depois das indústrias aço terem deixado de receber incentivos por parte dos que pensam que os lucros se multiplicam sem mais investimento, apenas mais exploração.
É a ruína do capitalismo americano por culpa da economia global onde as tácticas deixaram de ter em conta o monopólio que a América chegou a impor e que se esqueceu que teria de acabar.
Ferrugem Americana é sobre esta destruição da coluna vertebral da América - aprendemos isso com Mad Men e a campanha para a Bethlehem Steel, companhia da Pensilvânia onde este romance se passa - por uma via muito mais destrutiva do que a económica: a social.
Nos seus vários exemplos de vida - de um modelo só, como veremos - está a corrosão sistemática da crença. Crença no sonho americano e nos seus próprias méritos.
Todas as personagens estiveram à beira de escapar ao local onde se encontram, receberam oportunidades douradas para tal, mas minaram-nas pela sua própria consciência.
Convenceram-se de que não podem ou não merecem mais e acabam por permanecer nas situações que lhes são mais terríveis.
O pequeno génio que nunca foi para a Universidade para ficar a tomar conta do pai. O futuro jogador de futebol americano que se deixou levar pela procratinação e acaba na prisão pelo único crime que, de facto, não cometeu.
São apenas dois casos mas são os mais importantes, pois é esta dupla de amigos improvável que acaba pode colocar em marcha os eventos mais importantes do destino das pessoas de Buel.
Quando os dois fazem uma tentativa tardia e desesperada de fugir àquele destino - quatro mil dólares roubados ao pai de um deles e um plano de vagabundagem pelos caminhos de ferro - pouco depois da periferia da sua pequena cidade têm um encontro com o próprio destino que forjaram. As suas opções obrigam-nos a provocar uma morte e a regressar ao sítio de onde partiram.
Isaac (o rapaz demasiado inteligente) pode ter sido o autor físico da morte, mas é a teimosia de Billy (o desportista acabado por nunca ter tentado) que a provoca.
Isso afecta-os a ambos e Isaac parte de novo, a solo, fugindo de uma culpa que julga ser denunciada por... Billy, entretanto preso, acusado por uma testemunha e pela consciência local do merecimento em ser preso depois de anos antes quase ter morto um rapaz.
Afastados mas narrando o mesmo desencanto com o seu próprio falhanço, os dois tornam-se exemplos do que falhou insistentemente na vida dos pequenos locais americanos, esventrados e esquecidos.
Na verdade, por via do "fluxo de consciência" usado pelo autor, a narrativa dos dois adolescentes (e das pessoas que os rodeiam) torna-se na de uma cidade americana mais do que derrotada. E nessa pequena cidade americana, a corrosão do coração financeiro só pode levar a que uma pancada violenta num ponto da sua estrutura leve ao desmoronamento do seu conjunto.
De facto, todas as personagens à volta deles os dois seguem o mesmo caminho de esmagamento pelo destino.
Um acto violento - ainda que de legítima defesa - leva a que se revele os erros que foram todas as opções daqueles personagens (a mãe de Billy, o pai e a irmã de Isaac, o chefe de polícia) que os prenderam à terra que já nada tinha para dar.
Um acto violento que se repercurtirá em muitos outros. Cada personagem executando o seu, como se tivessem de os cometer para confessarem a paridade - talvez mesmo a inferioridades - àqueles rapazes que perderam o futuro tentando escapar dali, como alguns deles tentaram e outros nunca sequer com tal sonharam.
O que cada um entrega para destruição, seja corpo, consciência ou vida, tenta servir de redenção aos jovens que ainda merecem uma segunda oportunidade de partir daquele destino trágico.
Segunda oportunidade, ou terceira ou quarta. Em desespero, em nome de uma fuga que serviria para eles próprios se congratularem por não terem visto todas as gerações tombarem ali.
Todas estas vozes ecoam quase como uma só, permitindo sentir uma coesão do tecido do romance que é tal como julgamos que o tecido social da América profunda deve ser.
Um tecido esticado ao limite pela necessária crueldade com que Philipp Meyer trata as suas personagens. Não há perdão da parte do ficcionista quando as vidas nas suas mãos têm de ser, além de utensílios narrativos, alertas de consciência. E isto sem que os propósitos secundários derrotem a instância literária primeira.
Só o seu talento as ajuda a serem personagens fortes de uma visão aterradora que se repete para os americanos, um povo que parece condenado a repetir os erros de um Passado já esquecido mas, também, já muito bem escrito.
Sem comparações com nomes importantes ou buscas pelo Grande Romance Americano, estou em crer que  Ferrugem Americana prova que a coluna vertebral americana está desfeita, mas insiste ainda em não ceder. Talvez tenha mudado a sua forma - a antiga moralidade que aceita ter de contornar - mas não deixou de estar compacta com a fidelidade dos habitantes uns aos outros perante a ruína deixada pelos que puderam partir de bolsos cheios e esperanças intactas.


Ferrugem Americana (Philipp Meyer)
Bertrand Editora
Sem indicação da edição - Novembro de 2011
416 páginas

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