A saga Os Jogos da Fome é apontada a um público juvenil, como bem se poderá ver pelo triângulo amoroso que percorre a quase totalidade dos volumes (mas que, para ser justo, não é uma obsessão permanente).
Se consegue, em sentido inverso, seduzir um público de faixas etárias mais variadas é porque sabe construir, no pano de fundo da acção, uma abordagem cujos elementos políticos importam tanto quanto os elementos individuais ligados à protagonista e, mais ainda, sabe utilizar o tal triângulo amoroso como elemento de desenvolvimento desse pano de fundo.
Pois se é a acção - agora no sentido com que se usa para definir um género contendo um conjunto alargado de obras de ficção - que torna estes livros numa leitura que se deseja fazer sempre num contínuo veloz, é pela forma como estes integram e fazem reflectir sobre expedientes políticos - que, da ditadura à democracia, continuam a ser usados sem excepção - que eles vão além da distracção inconsequente.
A construção do mundo futuro com elementos políticos que seriam então arcaicos - sejam os Jogos Romanos ou a Guerra Fria - sublinha algo mais importante do que a realidade mais óbvia da crítica aos limites modernos do voyeurismo televisivo, algo que já era parte da provocação de Battle Royale (e falo, neste caso, do filme e não do livro que lhe deu origem e que não tive oportunidade de ler).
Começando pelo controlo da população pela imposição de medo perpétuo (algo que também não era estranho a Battle Royale) através da transmissão televisiva e visualização obrigatória por parte da população sob o jugo tirânico, a saga vai mostrando que a propaganda pode ser uma arma essencial na política.
A utilização de um instrumento tão pouco controlável mas tão abrangente como a televisão - em directo, ainda para mais - torna a situação mais interessante pois a manipulação torna-se recíproca e vai mesmo para lá disso.
Se o ditador a usa para controlar a população, também os protagonistas dos Jogos da Fome revelam que sabem muito bem como utilizar a sua presença perante as câmaras e, finalmente, é a própria audiência, incluindo aquela que está absorta pela propaganda e pelo gosto pela violência, que manipula o resultado do que está a acontecer recusando a morte dos heróis que se vê formarem nos ecrãs.
Outras considerações têm de ser feitas a propósito dos intervenientes que produzem o evento para a televisão. Os produtores, os estilistas, os maquilhadores...
Por mais pequeno que seja o seu papel, fica por saber (antes de algumas revelações de crença do política dos mesmos) se estarão obrigados a criar o melhor programa possível em que os jovens que vão morrer são apenas mais uma ferramenta ou se serão fanáticos igualmente culpados pela barbárie da qual retiram prazer em funções artística em vez de políticas. Uma questão que seguiu Leni Riefenstahl toda a sua vida e que implica julgamente morais além de estéticos para com a sua obra.
Em direcção ao final da saga a propaganda - bem como a encenação, a manipulação de afectos para com as personagens heróicas e alguma falta de escrúpulos naquilo que é filmável - revela-se como uma arma que ninguém pode ignorar, transitando do Governo para a Resistência e sendo usada efectivamente tanto como arma como contra-arma na exposição das falhas de segurança e da insegurança que deveria permanecer fora de câmara.
São temas que preencheram boa parte do Século XX e que mesmo agora estão em discussão; que não se perdem desde que e enquanto existirem meios de comunicação activos e populares onde os graus de liberdade - visados, executantes e audiência, pelo menos - estão para lá de qualquer possibilidade de controlo absoluto.
Mas este não é um conjunto de temas que a autora trate de perseguir e, não haja dúvidas, nas mãos de um autor mais interessado num público adulto (e, portanto, que colocasse um pouco de parte a protagonista) este pano de fundo - que é a essência do mundo distópico do futuro, afinal de contas - seria o verdadeiro protagonista.
A obra alternativa seria mais rica mas, eventualmente, ler-se-ia com menos ritmo. Não creio que tal fosse mau para o público juvenil a que, primeiro, apontava a obra, mas talvez apagasse aquele que é o forte da autora.
A sua escrita é eficaz porque, colando a narrativa à jovem Katniss Everdeen, esta constrói a sua personagem enquanto esta está em acção ao invés de tentar separar momentos de reflexão de momentos de execução.
Interagindo com os elementos que a rodeiam na arena ou tentando perceber os fundamentos de planos que só lhe são revelados parcialmente ou por sugestões fragmentadas, Katniss mais do que se revela como personagem, evolui.
Katniss não é a perfeita combatente, mas tem a vantagem do instinto prático. Já no que toca à relação com a sua construção como heroína televisiva, ela é a menos capaz de entender o valor e a forma de lidar com tal situação. E, no entanto, as suas debilidades não desaparecerão por completo, mas darão lugar a formas pessoais de se salvaguardar e de levar por diante a libertação de um povo que a toma como inspiração apesar da sua falta de vontade.
Há um grande senão a fazer a esta descrição das forças da autora. Ao terceiro livro desvia-se parcialmente deste tipo de relação com a protagonista e divide o foco, sobretudo, com a realidade da Resistência.
O terceiro livro aprofunda a forma como se chegou àquele ponto de conflito, o que pareceria ir de encontro às expectativas de aprofundar as alegorias sobre o mundo passado e presente.
Não vai porque o conteúdo dedicado à guerrilha e às armas do poder instituído acrescenta muito material que parece não ligar bem com o resto da saga mas, sobretudo, obrigaria a que a escrita encorpasse em vez de continuar a depender da execução rápida e de uma personagem que já está quase totalmente definida (mesmo se lhe peçam ainda para assumir um novo papel).
O terceiro livro não se lê como os anteriores pois ao expandir a visão sobre os acontecimentos deste universo criado deveria ter também deixado de ter a âncora em que se transforma a protagonista depois de ter deixado de ser o elemento aliciante e individualizante da vivência no interior da arena onde decorriam os Jogos da Fome.
Até porque, se formos a olhar ao arco narrativo global desta trilogia, é em Peeta Mellark que encontramos uma personagem mais complexa e interessante.
Os Jogos da Fome (Suzanne Collins)
Editorial Presença
2ª edição - Outubro de 2011
256 páginas
Em Chamas (Suzanne Collins)
Editorial Presença
2ª edição - Outubro de 2011
268 páginas
A Revolta (Suzanne Collins)
Editorial Presença
1ª edição - Novembro de 2011
280 páginas
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