Faço batota e cito de O Jogo do Anjo (uma crítica que pertence ao porvir) a fórmula para livros de Ignatius B. Smason: ...que desse a tudo um tom um pouco sinistro e que centrasse a história num livro secreto possuído por um espírito atormentado, com enredos secundários de aparente conteúdo sobrenatural.
Dirão que é um jogo metaliterário de Zafón, mas é ele a confessar a fórmula que lhe serviu para este livro. Fórmula que pertence aos romances de cordel e aos folhetins escabrosos.
Entendo mal que tal fórmula tenha merecido tantos e tão repetidos elogios e despertado tão avassaladoras paixões - ouvi uma vez, da pessoa que me emprestou este livro, que quem não gostar de A Sombra do Vento não poderia ser seu amigo.
Talvez me tenha tornado num leitor cínico mas todos os mistérios vitais deste livro - havendo muitos outros menores - são previsivelmente resolvido ainda ele não se aproxima do meio.
Conhecendo as versões de menor qualidade de exagerados melodramas amorosos e de impossíveis mistérios difusos, sabemos logo quais serão as causas dos tormentos do casal Júlian e Penélope ou a identidade da figura que se move nas sombras atrás do último exemplar d'A Sombra do Vento (o livro dentro do livro).
E conhecendo as de maior qualidade, sabemos de onde andou ele a retirar referências e inspiração, numa recombinação de técnica e estilo que não se comparam aos originais, mesmo se Zafón merece que lhe elogie o domínio da escrita (mas isso já o fizera com os seus livros anteriores) e a criatividade com que vai pontuado a previsibilidade - e, por vezes, elevando a qualidade - da sua narrativa.
Sobretudo na criação do Cemitério dos Livros Esquecidos se vê o grau de inventividade que ele pode alcançar mas também, a partir da sua revelação (e essa é logo no início do livro), se lamento que ele não persiga sempre o melhor do seu imaginário mas acabe a utilizar as fórmulas menores (e gastas) dos géneros que combinou.
Para um livro sobre o amor pelos livros, esse importante ponto de partida que é o Cemitério dos Livros Esquecidos, não tem influência senão como pequena digressão chamativa para uma história que dali parte mas ali não volta.
Tal como o livro de Carax que é praticamente um MacGuffin para uma história - mais uma história, na verdade, quando se lê cronologicamente a obra do escritor - de um rapaz à procura de passar à idade adulta pelo entendimento, tanto dos mistérios das raparigas que inevitavelmente amará como da vida da figura tutelar que lhe chegou pela autoria de um livro que só ele encontrou no interior do labirinto.
Os episódios da vida do rapaz e, depois, os episódios da vida do autor - e desses episódios, infelizmente, são os amorosos que prevalecem - ganham relevância sobre os mistérios dos livros ou do lugar onde as memórias rejeitadas destes acabam por encontrar um refúgio.
Dito tudo isto, não posso deixar de olhar para A Sombra do Vento como a versão seguinte (eventualmente um pouco mais madura) de Marina.
Uma versão onde o único verdadeiro traço de génio é uma personagem secundária de nome Fermín Romero de Torres que pontua o romance com um humor delicioso e altamente eficaz. Resultante das frases quase absurdas ou apenas irónicas que ele lança a meio dos diálogos - com uma seriedade que não admite reacção - é um humor reforçado pelo seu envolvente linguajar.
Com ele corremos páginas afora resistindo aos erros estruturais de Zafón à medida que acumula personagens e enredos secundários em torno do fio central (que, sem elas, seria pobre).
Sempre que Zafón se perde por caminhos secundários não tem engenho para resolver o retorno ao eixo nevrálgico, usando soluções facilitistas onde revelações úteis surgem artificialmente para que a história, então, avance.
Não há maior caso de Deus ex machina neste livro do que a absurda carta que Nuria deixa a Daniel. Várias dezenas de páginas escritas em grandíloquo estilo literário durante uma noite em que ela já corria perigo de vida e em que ela deveria ter tentado fugir.
A falsidade da carta no seio do livro é de tal ordem que ela se substitui a quase tudo o resto, pelo que teria sido suficiente para evitar tanta delonga até chegar ao confronto em que todas as linhas se cruzam em definitivo.
A Sombra do Vento (Carlos Ruiz Zafón)
Publicações Dom Quixote
2ª edição - Junho de 2005
408 páginas
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