segunda-feira, 26 de março de 2012

O uso das etiquetas literárias

A categoria a que chamam Policial Nórdico é tão alargada que acabam por lá estar livros que seriam olhados como estudos de uma comunidade em torno de um elemento estranho.
Um elemento estranho que envolve um crime, mas que sem a etiqueta correspondente acabaria por ser tratado abordado de outra maneira desde o seu começo.
Entenda-se que há um crime e há uma investigação, mas Karin Fossum afasta-se bastante do que é a expectativa normal para este tipo de ficção.
Mesmo Henning Mankell, que usava os seus livros para mostrar com realismo a investigação policial e para ir olhando os males à espreita numa sociedade aparentemente "quase perfeita", criou uma personagem central, algo perto do clássico detective.
Karin Fossum, ao contrário, dá protagonismo a todas as personagens, seja qual for o papel de cada uma. E fá-lo aprofundando sempre a investigação com uma especificidade que nos faz crer no realismo e que nos produz muitas dúvidas em vez de tentar deixar pistas pelo caminho que o leitor gosta de fazer a par das próprias personagens.
Sejam testemunhas, suspeitos, investigadores, comentadores de café ou a própria comunidade, todas as personagens agem credivelmente, cometendo erros por estarem envoltas com o acaso da situação ou suscitando dúvidas por tomarem opções justificadas apenas pela apreensão que os inocentes sentem perante um crime.
A culpa por mera proximidade ao crime - um assassinato de uma mulher indiana recém-chegada à Noruega - é mesmo a principal causa transformadora daquela sociedade pequena, crente do seu auto-conhecimento e pacifismo.
Essa proximidade tanto leva a que os papéis elementares de cada personagem se alterarem num cenário social mais amplo do que aquele que rodeia o crime, como leva à fractura comunitária por perturbação da percepção confiante gerada pela familiaridade do reconhecimento mútuo.
Olhe-se para o caso sumarizante da testemunha principal, rapidamente desprezada pela comunidade que não admite que alguém possa ter acusado (justa ou injustamente) um dos seus. Ela sente uma paixoneta obsessiva pelo detective que a interrogou e torna-se obsessiva no contacto com ele até que ele tem de ignorar o momento em que a comunidade passou do desprezo ao ataque a esta testemunha.  Para ela, a culpa de se ter visto indefesa não é da comunidade mas daquele homem e a última mensagem que ela lhe deixa são quatro pneus cortados à faca.
Aquilo que não era mais do que um justo acto de civismo torna-se na principal acha de uma atacante em potência que, numa mescla de motivos pessoais e sociais desviantes do que se espera que seja a norma, revela que a popularidade não está mais longe da propensão para o crime do que a solidão.
O domínio de Karin Fossum é espantoso, construíndo uma visão ampla das ramificações de um crime inconcebível - a comunidade até convive com alguns emigrantes - e dando uma vida profunda às personagens através dos seus papéis num momento limitado mas muito específico que, pela sua intensidade, altera o estado de espírito de uma pessoa numa vertigem.
Ela não confunde realismo e crueza com uma perda da expressividade da linguagem e a sua escrita é admirável.
Mas a sua grande arma é a falta de uma resolução para o crime referido. Os leitores que venham à espera de um policial acabarão por ficar algo frustados com as dúvidas que são lançadas na última página como se esta fosse ainda a primeira.
Tudo porque o verdadeiro crime é a destruição que uma comunidade faz das suas fundações por medo do que só existe na cabeça de cada um dos seus membros ao olhar para si mesmo pelo olhar alheio.
O crime é essa destruição e o que mais está por vir a afectá-los.

Já agora, refiro que a mais recente edição deste livro ganhou uma capa diferente. Não é muito melhor do que esta mas não confunde o livro com outra categoria literária, a dos testemunhos de sobrevivência de mulheres em países cuja realidade está ainda muito longe da nossa.
As etiquetas literárias podem ser perniciosas ou uma útil ferramenta para orientar uma potencial leitor. Não são boas nem más senão pela maneira como são usadas.
Tentar juntar várias delas para vender livros a compradores incautos é, certamente, a maneira errada de as usar.
Ou então o designer da capa (não creditado) limitou-se a ler o título e nada mais, o que é um grau de incompetência perante o lado cultural do produto comercial que deve levantar suspeitas várias ao leitor.
Seja qual for o caso, a imagem da editora saiu prejudicada, sobretudo quando antes já tinha conseguido uma capa assim.


A Noiva Indiana (Karin Fossum)
Oceanos
1ª edição - Julho de 2009
280 páginas

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