Mesmo sem os dois tomos que completam a trilogia iniciada com O Príncipe da Neblina - que não parecem ser essenciais para entender o percurso como autor - é possível perceber que passos deu Záfon para chegar desse seu primeiro livro até este segundo tomo de histórias em torno do Cemitério dos Livros Esquecidos.
Sempre com o seu gosto pelas assombrações dos contos góticos, Zafón tentou encontrar um público mais abrangente tentando primeiro exagerar a influência romântica dos mesmos e acabando por quase o substituir pelo melodrama de baixa qualidade.
Ao mesmo tempo, Zafón foi procurando uma plataforma literária que lhe permitisse solidificar os momentos de detectivismo com as vertentes aventurosa e bibliófila bem equilibradas.
O Jogo do Anjo é o livro em que ele consegue a combinação correcta, sem abdicar das várias hipóteses narrativas que lhe proporciona o mais largo espectro de géneros. Quer isto dizer que ele percebeu que o seu género de história funcionaria melhor por diminuir o tom do romance trágico e fazendo prevalecer uma combinação do gótico com um noir desavergonhadamente saído das páginas de velhos folhetins.
Mesmo para o estilo de escrita que ele cultiva, estas formas literárias recuperadas ao século XIX e usadas neste preciso rácio, são as mais indicadas para ele.
O ambiente que ele cria para a Barcelona de antes da segunda Guerra Mundial está povoada de casas amaldiçoadas e ruas mal iluminadas. Fundem-se perfeitamente, assombrando por demasiadas possibilidades à espreita, reais ou imaginárias.
Polícias corruptos e velhos diabos, todos acercando-se de David Martín, um jovem escritor a braços com as agonias dos primeiros passos profissionais.
Os tormentos das obrigações e das motivações do jovem escritor têm origem na sua venda aos diabos reais e ocultistas: editores que só se preocupam com dinheiro e uma figura sombria que não é nomeado como tal mas que deixa todos os sinais de ser o próprio Lúcifer.
Algo mais existe num escritor que se entrega sem descanso ao trabalho, um desígnio que determina a necessidade de criar e, com isso, influenciar o mundo.
Por via das suas criações, cada livro um filho de que não pode abdicar mesmo se nunca deva ver a luz do dia, Davida Martín está a criar o seu próprio tormento.
Barcelona é tão demoníaca quanto ele a recria da sua torre de vigia de onde lhe chama a "cidade dos malditos".
Mas é o seu outro livro, uma base para a criação de uma nova religião, que mais lhe arranca as entranhas, que mais avisa sobre o poder da narrativa.
A exposição da sua alma traz delícias e perigos que só a nobre arte de narrar poderia conter e, por isso, fica-lhe a culpa das desgraças que poderá desencadear neste mundo - a das que, desde logo, desencadeia sobre si mesmo.
Esta exclusiva motivação pela dificuldade (e intensidade) da vida de escritor vem em benefício do livro de Zafón proporcionando uma estrutura bem mais sólida do que as anteriores.
A história é sobre a vida do escritor e o parto dos seus livros e o cerne mantem-se sempre aí. As pequenas derivações ou as variações de tom, são sempre maneiras de integrar as muitas ideias que Zafón mostra, mas que servem à definição da personagem central e à maneira original de reinventar a vocação de escritor.
A importância dos livros, do trabalho de escrita e do próprio Cemitério, sempre influentes e longe de serem curiosidades exóticas para ornar alguma banalidade romanceada.
Não é por isso que Zafón deixa de fora de mais este livro os seus temas predilectos - pessoais, acaba-se por crer - que, no caso essencial da tutelagem emocional e criativa dentro do mundo dos livros, tanto desagua como parte de Martín.
A sugestão é de que Zafón já não procura apenas definir o reencontro com figuras parentais desaparecidas mas está em vias de entender como passar essa responsabilidade adiante.
Se David Martín é uma representação ficcional do próprio Carlos Ruiz Zafón poderá não ser uma especulação completamente correcta, mas que este é o melhor dos seus heróis (evitei deliberadamente a palavra "personagens" pois não há maneira de esquecer Fermín), também porque é dos que acumula mais falhas, persistindo nos seus erros em nome do que lhe nasce naturalmente. E não nos podemos revoltar com essa sua insistência pois é das poucas coisas que sempre o acompanhará.
O Jogo do Anjo é a concretização dessa beleza imperfeita do labor de escritor que o livro traduz numa visão mais saborosa - porque extravagante.
Trata-se de um livro a guardar, independentemente do desapontamento anterior ou das emoções que os tomos seguintes venham a proporcionar. Talvez só o espírito completista se perturbe com tal decisão.
O Jogo do Anjo (Carlos Ruiz Zafón)
Booket / Planeta Manuscrito
1ª edição - Maio de 2011
576 páginas
Em linhas gerais estou de acordo com esta apreciação. No entanto parece-me difícil compreender toda a personalidade literária de Zafón sem ter em conta aquele que é, sem dúvida, o seu livro mais marcante: A Sombra do Vento. Talvez nunca, na literatura espanhola contemporânea, o génio narrativo tenha atingido estes píncaros. Um livro sobre livros que decidem destinos.
ResponderEliminarobviamente, escrevi o comentário acima antes de descobrir os posts mais antigos.
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