sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Fábula real

Se há uma pergunta em Fábula de Bagdad é se a liberdade é uma conquista ou um bem pelo qual se paga o preço elevado da dignidade e da coesão.
Se a liberdade permite que o indivíduo se liberte de constrições que o pareciam diminuir - no caso dos leões, ser alimentado quando o instinto é caçar - até que ponto o indivíduo perde a noção de grupo e a força que este lhe traz para seguir uma trajectória determinada exclusivamente por si.
Em que momento pode a liberdade deixar de ter significado e transformar-se em solidão?
Até onde se pode ir se o mundo que é entregue - mais do que entregue, forçado - a estes leões está meramente despojado de vida?
Do ponto de vista animal, o mundo apresenta-se através de conceitos imberbes, gerados para completar os espaços da realidade felina.
Daí que seja impressionante confrontar-nos com a megalomania humana quando os leões são incapazes de conceber que "criaturas daquele tamanho" (tanques blindados, entenda-se) tenham inimigos, quando tais objectos são precisamente o que atrai predadores bélicos maiores.
O olhar ingénuo destes animais é o que nos fala sobre nós mas as suas acções ausentes de influência humana são o que nos censura.


Embora a tradução do título leve a perdas de significado (como Pedro Moura bem assinalou), a indicação portuguesa tem muito sentido, não só por estes ensinamentos humanos dados por animais, mas até pelo traçado realista com algumas características mais imaginativas que sugerem a efabulação - e tal fica bem resumido no momento em que uma das leoas se vê perante a representação de um leão alado - com a expressividade facial a conjugar o animal e o humano, bem como o reconhecimento e a surpresa. Os animais são o contacto directo entre o real e o inimaginável nesta história.
Como o antropomorfismo não é total nem simbólico, ou seja, os animais não têm o porte humano nem, pelo contrário, as suas características servem para acentuar os traços de humanos, estamos de facto muito próximos de Esopo ou Beatrix Potter, com a capacidade expressiva dos animais a servir para demonstrar uma ideia forte sobre a realidade.
Tal como os muitos tons ocres e amarelos - e suponho que realistas considerando o ambiente onde se desenrola a história - do livro são asfixiantes mas também deles surgem mais facilmente pequenas maravilhas, tanto para o que será o ponto de vista animal, como para o ponto de vista do leitor.
A "Fábula" faz sentido aqui para resgatar um ambiente onde a destruição é a única expectativa. Que se baseie numa história real é uma surpresa mágica que reforça todo o significado do livro.


















Fábula de Bagdad (Brian K. Vaughan e Niko Henrichon)
BdMania
1ª edição - Dezembro de 2007
136 páginas

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