terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Culinoiria

Sarilhos nas Caraíbas não me soube tão bem quanto Um osso na garganta, talvez porque o efeito de novidade se tinha desvanecido e a expectativa estivesse num patamar mais elevado.
O que numa homenagem ao noir com o espírito de leitura desenfreada capaz de fazer uma mulher saltar da mota ainda nua a disparar uma arma automática quer apenas dizer que me diverti quase tanto como com o livro anterior.
Desse livro para este desaparece a insistência maior nos elementos da culinária profissional. Pelo contrário, regressa Tommy e a sua namorada Tracy.
Fugidos dos mafiosos nova-iorquinos, o casal passou de protagonista a complemento de um outro casal de quem se tornam amigos.
A tentarem viver as suas vidas longe dos seus contratantes, Henry e Frances é um casal de assassinos que vive feliz e apaixonado num paraíso na Terra.
Só que o "Padrinho" que Henry falhou em matar veio esconder-se também ali e Henry quer perceber se as coisas entre eles estão bem recorrendo a Tommy e Tracy que trabalham para ele.
O que daqui resulta é um livro sobre camaradagem, muitas vezes parecendo um mero passeio de férias em que Bourdain dá conta de como as Caraíbas são o local que devemos querer visitar.
Um local onde até foragidos e assassinos podem encontrar forma de serem felizes e apreciados, numa normalidade com uma fasquia cimeira.
Só que quando o livro não se dedica às viagens, lança-se com toda a imaginação siderada do autor para cenas de acção que deviam fazer a inveja de Hollywood.
Um grupo de capangas vindos de Nova Iorque contra um casal e um velho mafioso, plena loucura de tiros e sangue em que Bourdain se delicia, o que se transmite ao leitor.
E o melhor está nas trocas entre os casais, com bastante humor negro e ainda mais jogos de duplo sentido que fazem lembrar o melhor do cinema, aquela idade de ouro em que eram pelos diálogos que os actores brilhavam, não fazendo prisioneiros na hora do duelo de palavras.
Para acomodar todos estes elementos, Bourdain é um pouco liberal com a trama, certamente deixando alguns detalhes em aberto.
Valeria a pena cobrar-lhe tal como um erro se não fosse o facto disso ajudar às reviravoltas e a um efeito de esticão súbito que a história nos dá de poucas em poucas páginas.
Afinal falamos de um noir, o que a julgar por um dos seus mestres deve ser um livro escapista e pouco obediente em que o ritmo e o ambiente pesa mais do que o restante.
O chef anda lá perto!
Descomplicado e tresloucado, um policial para ler em qualquer local - ainda que, de forma mais provável, na praia tenha maior impacto - sentindo a dose de adrenalina que ele transmite e regozijando-se com ela.
Se estes livros são o que Anthony Bourdain era capaz de escrever no tempo livre de quando era um chef de topo, gostava de saber o que ele alcançaria dedicando-se à literatura a tempo inteiro.
Já conhecendo bem as suas obsessões e sentindo que Bourdain encontrava aqui uma voz sistemática - tudo isto por vezes ainda traz para os seus programas televisivos - creio que o resultado podia aproximar-se do notável.


Sarilhos nas Caraíbas (Anthony Bourdain)
Ambar
1ª edição - Outubro de 2003
324 páginas

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