Tenho uma aversão pessoal por Stephen King devido à sua visão arrogante e egocêntrica de um filme genial como The Shining apenas porque não é perfeitamente fiel ao seu próprio livro.
Não que ele não tenha direito a sentir-se insatisfeito, mas soa-me sempre como um mentecapto por continuar, por mais de três décadas, a atacar o filme sem tentar compreender que a sua existência não substitui a da sua obra ou que a liberdade de interpretação não invalida as intenções originais do autor.
Stephen King faria bem em aprender com Isaac Asimov que recebeu com capacidade de reflexão a interrogação "O que o faz crer que percebe aquilo de que trata a sua história?" ao dizer a um professor que analisava um dos seus contos que a sua intenção original nada tinha a ver com a ali explanada.
Reconheço que tal como Stephen King perante o filme de Stanley Kubrick eu mantinha o meu próprio preconceito acerca do autor que me impedia de ler o que muitos consideram um autor essencial.
Em minha defesa devo apontar que há alguns anos atrás tentei ler Cell - Chamada para a morte - saltando por cima da tagline ridícula (e intraduzível) Não é à toa que cell (telemóvel) rima com hell (inferno)... - e ao fim de pouquíssimas páginas tive de desistir de tão mal escrito que era esse livro.
Nova tentativa agora e perante os elogios a uma série antiga - crendo que os anos tenham causado alguma decadência do autor até chegar àquele outro livro dele - e a curiosidade que a sua adaptação a banda desenhada já me tinha levantado.
O primeiro volume mostrou-me o quanto poderia estar a perder, com Stephen King a criar um mundo interessantíssimo onde todas as possibilidades estão em aberto por sugestão em aberto de tudo o que ficou para trás.
Trata-se de um mundo onde a memória Histórica está de tal modo perdida que a Ciência se começa a confundir com Magia - muito embora ambas tenham dominado este mundo antes dele ter chegado a este ponto.
Sendo "este ponto" uma sugestão de mundo pós-apocalíptico retornado ao estilo do Velho Oeste e onde uma versão (decalcada mas intensa) do Uomo senza nome vagueia como último descendente dos heróis Pistoleiros que mantinham a paz.
Um mundo que existe num universo paralelo ao correntemente habitado por nós, num aumento de complexidade - que neste caso é o mesmo que dizer aumento de interesse - em que a Ficção Científica (de grande escala) se soma à Fantasia e ao Western.
Todos este géneros e as suas variações internas combinam bem porque não são ainda demasiado explorados nos seus detalhes, deixando em aberto um espaço de conjugação que proporciona alguma abertura ao autor e aos seus leitores, todos juntos cimentando este mundo literário.
Em oposição a isso, não se trata de um livro cuja estrutura inspire o sentimento de "solidez", com cada uma das suas cinco partes a parecerem independentes - mas agregadas de forma muito funcional e perfeitamente legível - e com o objectivo de dar a conhecer o Passado, tanto do mundo como do seu protagonista.
Encarados como mini-histórias onde as personagens coadjuvantes servem para descobrir mais acerca do protagonista e depois desaparecem, os capítulos são melhores do que a globalidade da história.
Ainda assim sugerem um sentido de continuidade da aventura, com a reflexão a substituir a acção, que torna a leitura num prazer acrescido capaz de evocar o espírito d' O Senhor dos Anéis (a criação de uma linguagem própria sublinha isso mesmo) e a confortável revelação de que os livros de aventura podem ser plácidos e reflexivos sem deixarem de ser excitantes.
A combinação de promessas do que possa vir a caminho e os eventos já ocorridos tornam o livro arrebatador e uma entrada perfeita numa série que virá a ser uma longa leitura.
Já A Escolha dos Três quebra com o sentimento de engajamento que o primeiro livro criou.
Sabendo a dificuldade que há na "segunda obra", em qualquer tipo de Arte, era com acrescida boa vontade que passava ao segundo tomo, só que este teve o condão de me colocar de pé atrás logo no primeiro momento com um capítulo que serve quase exclusivamente para colocar o Pistoleiro numa situação aflitiva sem apresentar devidamente as criaturas que lhe causam a perda de dois dedos.
A funcionalidade dessa parte do texto é por demais conveniente e apesar de ficcionalmente o segundo livro se iniciar apenas sete horas após o término do segundo, denota facilmente o passar dos anos e o aumentar das pretensões de Stephen King.
A leitura do livro comprovará que a duplicação do número de páginas sacrificou a eficácia do autor que proporcionava ao primeiro livro uma beleza frásica que deixou de se sentir neste segundo volume.
A dimnuição de eficácia literária acontece na proporção inversa do aumento das intenções do livro, que extravasam para a realidade social e que tentam ser avaliações críticas cujo âmbito parece fugir ao universo criado.
A descoberta dos seus companheiro de viagem implica que Roland terá de atravessar três portas que vão surgindo ao longo da costa que percorre e que o levam para o nosso mundo em momentos de transformação na década de 1960, 1970 e 1980.
King trata de abordar temas fortes, chamando-os em pleno conceito abstracto com "letra maiúscula": Racismo, Psicopatia(s), Adição (ao Jogo)...
Estes momentos para lá das portas são histórias dentro da história e se funcionam por si mesmos, funcionam menos bem integrados no cenário global do livro.
As novas personagens que daí resultam estão cheias de potencial, pelo que não deixa de ser importante conhecer as sua origens.
Mas só o são no universo em aberto que veio do primeiro livro, não se comparando sequer ao que são no universo fechado das suas próprias origens.
Quando o insólito grupo de personagens está junto no mundo original do livro acontecem momentos muito interessantes, confrontos de resolução complexa e evolução da relação do trio que constrói um grupo e o lança para o prolongamento da aventura arrastando consigo o leitor.
Só que King insistiu em dar uma importância excessiva aos momentos que acontecem no mundo que reconhecemos como nosso, tentando completar um "círculo perfeito" através deles sem que estes pareçam ter o fôlego para tal. O resultado é o de duas histórias distintas disputando a preponderância na obra.
O autor parece deixar de lado a escrita aberta a infinitas possibilidades para começar a especificar este universo mantendo-se vago para que os leitores sejam obrigados a retornar para os próximos livros.
Sai-se deste tomo com a incerteza sobre para onde caminha esta saga, com a desconfiança de que a importância deste segundo livro - e, talvez, a sua qualidade - só possa ser devidamente compreendida através dos próximos livros.
Mais do que a quebra com as emoções positivas vindas do primeiro livro, é esta falta de consolidação que faz vacilar perante aquilo em que vai resultar este esforço de Stephen King.
O Pistoleiro (Stephen King)
Bertrand Editora
1ª edição - Junho de 2013
216 páginas
A Escolha dos Três (Stephen King)
Bertrand Editora
1ª edição - Abril de 2014
424 páginas
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