domingo, 31 de agosto de 2014

Como uma dupla deve ser

Os motivos para que o público se mantenha fiel aos policiais nórdicos fica bem patente com a diferença - positiva - que estes marcam para outros exemplos do género.
A manutenção de um apego a um realismo funcional que permite falar da realidade local enquanto melhor serve o estabelecimento das personagens, da trama e do cenário envolvente.
Facilmente se explica o que isso significa de forma prática, comparando duas leituras pouco espaçadas.
Para James Patterson a formação de uma dupla de investigadores serve para "apimentar" os momentos menos agitados do thriller.
Para Jussi Adler-Olsen a formação de uma dupla de investigadores serve para nos falar de uma realidade semi-silenciada de discriminação racista - e religiosa - na Dinamarca, ao mesmo tempo que estabelece a desconsideração a que está submetido o protagonista - por lhe ser atribuído um assistente Sírio sem formação policial - e a relevância que a ingerência desse "corpo estranho" terá no Departamento Q.
A criação da relação entre a dupla é o motor que faz avançar a investigação, com Assad a obrigar Carl a romper com a sua apatia para com o trabalho gerada por uma experiência debilitante em que viu morrer um colega mas, igualmente, por um desprezo geral pelo mundo à sua volta.
Tanto pela curiosidade leiga - mas muito inteligente - com que aborda o trabalho policial  e que terá uma influência directa no caso, como pelo desconforto social e pessoal que cria num polícia que se dedica a queimar tempo até poder ir para casa.
A aparição de Assad dará mesmo um contributo indirecto a outras investigações, dos casos actuais para os quais Carl já não é chamado, mas a que não resiste a evidenciar alguns detalhes. No fundo a fazer a extrapolação que os "colegas" não conseguem e que condenou os casos para o arquivo que ele agora tem de gerir.
São duas óptimas personagens que se tornam complementares sem nunca perderem o antagonismo de personalidade que soma interesse à sua relação.
Uma relação que é mesmo uma personagem (colectiva) por si própria, criada com superação em relação à soma das suas partes.
Por eles este é um Departamento que tem de ser seguido com enorme atenção, com a relação entre os seus efectivos ainda em processo de consolidação.
Estes (três) personagens são, para já, melhores do que a trama policial. Essa é interessante, tem potencial para atingir outros patamares, mas não é gerida com a necessária precisão.
O facto de acontecer simultaneamente em dois pontos temporais (um avançando em direcção ao outro) leva a uma gestão menos interessante da informação disponibilizada ao leitor.
O leitor avança mais depressa do que os protagonistas, o que leva a que a resolução da trama compense isso com um exagero mais ao estilo do thriller do que do género de policial cerebral que o livro vinha sendo até aí.
O truque que o autor usa aqui para o tipo de resolução que lhe deu jeito não pode ser reproduzido constantemente pois seria já uma certeza - e não apenas um risco - a perda da ligação aos seus leitores pela perda de plausibilidade.
Com os casos arquivados - em definitivo, digamos assim - o autor terá mesmo de abdicar da conveniência com que provas antigas e esquecidas surgem para fazer avançar a nova investigação.
Por mais que isso seja interessante como prova de um superior intelecto de Carl e uma demonstração de que apenas uma dedicação a tempo inteiro a um único caso pode produzir resultados de topo - novamente, o realismo funcional a ajudar a caracterizar um personagem e a criticar a realidade do país natal do autor.
Só que com estes personagens que já descobrimos, não há forma de não darmos uma (e talvez ainda outra vez, se for necessário) o benefício da dúvida a Jussi Adler-Olsen e continuar lendo os seus esforços.


O Guardião das Causas Perdidas (Jussi Adler-Olsen)
Editorial Presença
1ª edição - Junho de 2014
424 páginas

Sem comentários:

Enviar um comentário