domingo, 24 de agosto de 2014

O Absurdo como forma de arte

Os acasos proporcionam várias vezes casos de sucesso. Ter escolhido As Aves do Paraíso também são falsas logo após o livro de Woody Allen foi mais um desses.
Porque este livro me fala da filiação que se pode ver nos relatos de Woody Allen - também no seu stand-up e em alguns dos seus argumentos - e que no caso deste livro já havia sido levada se não ao seu extremo, bem lá perto: o espírito do Teatro do Absurdo.
Retrocedendo no tempo de um autor para o outro, o espírito das palavras é partilhado entre ambos e exacerbado pelo Germânico.
A forma como uma qualquer peculiaridade da vida quotidiana é encarada por si pela via de uma impossibilidade bem sucedida transforma o mundo numa aventura permanente.
Ao encarar a tristeza das vidas monótonas com respeito e dando-lhes, pela ficção, a permissão para transformar todos os sonhos, todos os devaneios ou todos os lamentos em realidade, Hildesheimer torna cada uma dos seus personagens num catálogo de apaixonantes absurdos.
Nenhuma das suas personagens está sujeita à necessidade de cumprir com a função de ser um elemento produtivo da sociedade, o que lhes permite ir à conquista.
Uma conquista que fica anónima ou que se mede numa escala que ninguém, além do próprio personagem, saberá interpretar.
Dentro do mundo da Arte isso significa ser o inventor de uma grande pintor nacional - de uma nação que nem ainda se colocou no mapa.
Ao fim e ao cabo, um falsificador de quadros nunca imaginados pertencentes ao espólio de um pintor que nunca existiu.
Sucesso esse potenciado pelo insucesso de ver a obra desse Mestre ser falsificada por outros que relegam as pinturas do pintor original para o campo das falsificações.
Pior, ser tão bem sucedido em criar um falso artista que ao criar os seus próprios quadros acabará por ser considerado apenas um descendente desinspirado desse outro.
Se isto não é um absurdo não sei o que seja. Mas é, também, o mais brilhante conjunto de vitórias e derrotas que alguém pode ter na vida - sobretudo se esse alguém preferir vivê-las em profunda solidão.
Ganhar uma identidade que nunca se poderá revelar e perdê-la para aqueles que não a desejam, apenas dela desejam lucrar. E viver feliz com esse apagamento que dá liberdade ao mundo de criar e acreditar no pintor que quiser ter.
O humor - da história, das situações, dos comportamentos - não apaga a derrota que o mundo guarda para os personagens.
O riso vem com uma melancolia que não perdoa e faz-nos crer que, fôssemos capazes de nos ver tal como o autor vê os seus personagens, e seríamos todos obtusos casos de promissor insucesso.
Absurdos cada um de nós por crermos que deixamos marcas mais significativas do que aquelas que anonimamente já são legada ao mundo.
A elegância do desaparecimento, da escolha das hipóteses menores - durante uma viagem onde pode ir parar aos locais mais belos o protagonista decide-se a ficar no mais longínquo desconhecido - que vão levando a vida adiante até a píncaros inimaginados, é sátira feita a custas do leitor que não se ressente pois a sua recompensa imediata é essa beleza austera da prosa de Hildesheimer.
Toda a loucura se torna comum ao longo do livro e, mais do que isso, desejável como modelo de uma realidade melhor.
Um mundo onde a aplicação de todo o oposto da lógica dá valor aos homens, singulares pelas suas "derrotas" - se as quiserem continuar a ler assim - como ninguém o é pelas suas vitórias.

Outro absurdo - este desagrável - vem do desconhimento completo de Wolfgang Hildesheimer até me deparar com o seu promissor título numa daquelas "Feira do Livro" que se parece dedicar a tornar os livros em refugo.
Agora que li este seu livro sinto-me irado de que não seja um autor publicado, lido e admirado entre nós!
Ao contrário dos seus personagens, o apagamento não lhe assenta bem!


As Aves do Paraíso também são falsas (Wolfgang Hildesheimer)
Difusão Cultural
Sem indicação da edição - Junho de 1992
128 páginas

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