O humor, sobretudo aquele feito à conta do retrato contemporâneo de uma sociedade, é um dos géneros mais difíceis quando envelhece.
Reencontrar um riso sistemático num livro mais de cem anos depois da sua publicação seria a derradeira prova de que este superou o teste da passagem do tempo.
Lisboa em Camisa ainda guarda risos entre as suas páginas e tem a capacidade de entretenimento. A sua principal forma de superar o tempo é outra bem diferente: didactismo.
Esta descoberta para muitos (de nós) leitores no século XXI traz ensinamentos de várias índoles que falam do muito tempo que medeia entre a publicação e a leitura.
Primeiro que tudo, da sociedade tal como ela era no início da década de 1880. satirizada por representação sem acrescentos de maldade.
Uma sociedade fortemente hierarquizada sem que os que são arrogantes para uns tenham noção da ironia de terem de ser subservientes para outros.
Um retrato feito no interior de um apartamento e que a partir de uma família caracteriza a própria capital. Uma cidade que se vê como sofisticada mas que sofre do mesmo provincialismo do resto do país.
Ou que o acolhe e o faz crescer até se espalhar mais fortemente pelo resto do país. Afinal os personagens chegaram (ou fugiram...) do Algarve mas parecem já Lisboetas de gema.
Lisboa fica como uma cidade dividida entre o que foi e o que pretende ser, vexada pelos que dela partiram e idolatrada pelos que cá ainda não chegaram.
Um local repleto de pessoas à procura da ascensão social feita de apadrinhamentos e aprazimentos, com as vistas sempre colocadas num ideal que não existe senão ao ser construído com as suas próprias acções.
Este aspecto social de Lisboa terá prevalecido por muito tempo, também porque à sua volta o país não era trazido para diante.
Disso nos dá conta a adaptação televisiva dos anos 1960, disponível nos Arquivos RTP, que demonstra a validade do retrato durante décadas.
Vem daí o segundo ensinamento do livro acerca do humor. Não apenas de como o conteúdo prevaleceu mas como a forma antecipava outras expressões populares do humor.
O folhetim de Gervásio Lobato tem uma cadência episódica dentro de cada capítulo que estimula as peripécias.
Algumas que se percebem ser gags físicos transmitidos com perícia na sugestão da sua fluência. A dança da vitela no jantar de baptizado fica como o exemplo maior do estilo.
Nessa escrita se pode antecipar algumas formas da divertida confusão do burlesco cinematográfico, de bandejas atravessando portas para um lado e para o outro, na confusão dos que tentam cumprir com os caprichos alheios.
Há um sentido teatral que funciona também com os diálogos, onde há discussões por conta de um "s" que se põe ou tira do apelido alheio.
Diálogos a fazer sobressair os estereótipos observáveis em Lisboa e que tornavam os personagens de um exagero melodramático que se torna patético.
Personagens que pelo seu papel familiar influenciam o papel social que representam, numa ligação que reforça a pequenez do comportamento social de Lisboa à época.
Uma força teatral de impacto pouco subtil, para um riso abrangente e popular, devedor do teatro de revista que uns trinta anos antes surgira e que perduraria por quase outros cem.
Gervásio Lobato já escrevia sobre os compadres e as comadres que se queriam mostrar de peito feito enquanto diminuíam Lisboa à dimensão do seu bairro ou do seu prédio, para nela se sentirem maiores do que poderiam alguma vez ser.
Personalidades e formas de humor transmitidas pelo autor após tanto tempo que, como os editores escrevem, ressoam no que a sociedade nacional ainda é mas, sobretudo, fazem ver o difícil caminho que se percorreu para algumas melhorias que acreditamos ver no que agora somos.
Lisboa em Camisa (Gervásio Lobato)
Guerra & Paz
1ª edição - Julho de 2017
238 páginas
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