Foto de David W Cerny |
Perfumes. Breves como um olfacto tocado em mero instante. Intensos como a lembrança a que obrigam a correr atrás.
São memórias o que Phillipe Claudel deita à página. Com uma precisão extraordinária, superada depois pela finura da escrita.
A partida é o olfacto, organizado por via do alfabeto. A chegada são todos os sentidos, espraiados a partir do ponto nevrálgico.
O mundo retorna à mente do autor, reentrando a infinitude da contemplação por um espaço tão reduzido.
Pois se o perfume activa todos os outros sentidos, assim a primeira memória que traz cativa associações.
Algumas artísticas, outras sociais. Assim ganham consistência as memórias individuais. Mais importante, traçam um vívido retrado de um homem.
Esta forma de memória não cria um contínuo biográfico. Pode nem sequer tocar nos mais importantes acontecimentos da vida de Philippe Claudel.
Só que se estas são as recordações que fisicamente mexem com ele, são das mais intensas que podem sobreviver a qualquer forma de reconstrução das memórias de um indivíduo.
Memórias recentes, outras da infância. São o retrato acumulado do homem a par da interrogação do que se seguirá.
Ele recorda na sua figura corrente, passando a memória em bruto pelo filtro do conhecimento adquirido. A emoção pensada é o trabalho de escritor.
Por vezes em apenas duas páginas, Claudel lê o mundo - ou, pelo menos, a França - a partir do que o seu nariz lhe deu a conhecer.
A sua vida torna-se na possibilidade de retratar o país. O que conheceu, o que habita e o que o espantará.
Melancolia, crítica e dúvida. Todas estas emoções passam a estar conectadas com as memóras destes perfumes.
Conhece-se um país na dimensão do autor, ao longo de sessenta e três escolhas de perfumes que não podem ser repetidas.
Podem, algumas, ser partilhadas. Pontos de partida em comum das quais o leitor encontrará um caminho próprio quando se conseguir libertar da impressão intensa deixada pelo autor.
As que são exclusivas da vivência dele, pelo contrário, são capazes de levar o leitor ao mesmo destino e confundir a crença no que pertence a cada um dos envolvidos com o texto.
O talento de Claudel está em fazer crer que todas elas deveriam ser do leitor. Nasce uma vontade de lhe roubar as memórias.
Isso vem da transmissão das memórias. Concentradas como os perfumes pois é no lapidar das palavras que elas se estabelecem.
As memórias deixadas apenas como tal acabariam mortiças. Escrever é o que permite que a memória se concretize. Quem sabe se não leva até a que seja um pouco ficcionalizada...
Terminar o texto é tornar a memória fugidia definitiva. Definitiva na sua sobrevivência ao Tempo. E definitiva num retrato concretizado à força do labor da escrita.
O leitor pode permitir-se ficar com algumas destas memórias para si. Acrescentar os detalhes delas às suas próprias memórias.
Desde que a elas acrescenta a da partilha do autor francês. Associar a grandiosidade a que chega ao odor das páginas onde se imprimiu a tinta.
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