terça-feira, 10 de outubro de 2017

De imperial, nada




Depois de Hitler, Napoleão chega ao século XXI para abordar os problemas políticos de França, com maior incidência no terrorismo perpetado pelo Estado Islâmico.
Resgatado ao gelo ainda na plenitude da vida, qual Capitão América que em vez de um escudo leva o seu cavalo, ele encontra um mundo cheio de possibilidades em que se torna perito tanto quanto se vê assoberbado.
Escrevendo o seu próprio papel para o século XXI, é o de quem vem salvar a política do seu cobarde marasmo.
Fica longe de aceite tal ideia como a melhor base para um livro e Romain Puértolas não parece intentar em prová-la.
Ao contrário de Hitler, e apesar dos seus muitos traços implacáveis, Napoleão continua a ser admirado por muitos franceses.
De tal maneira que o novo presidente do hexágono tenha tido de ler uma abundância de artigos que listava as razões pelas quais Emmanuel Macron era comparável a, quando não se tornava de facto o novo Napoleão.
Daí que o Imperador não sirva os mesmos propósitos que Hitler, não levando ao confronto da modernidade com a dúvida moral do ressurgimento do Passado ideológico.
Napoleão é uma ferramenta para que Puértolas reforce o sentido de persistência dos franceses face ao mal: continuar a desfrutar da vida, usufruindo até ao limite dos prazeres da cultura popular do mundo ocidental.
Um limite que o livro testa nos seus contornos mais irracionais, colocando Napoleão numa t-shirt da Shakira e a beber Coca-Cola Light como se fosse um raro champanhe negro.
O autor opta por assumir por completo o humor que ele julga que seja do absurdo, mas quando chega a esse patamar já nada tem de humor.
Os seus esforços em torno e Napoleão desembocam no lugar-comum do humor feito à conta do personagem e, para aumentar a ofensa, tornando as piadas repetitivas.
Ataques ao tamanho do pénis do Imperador não são nada de novo e o autor nada consegue acrescentar de interessante à história bizarra que é a "vida" de tal membro desde o seu corte durante a autópsia ao corpo.
Se o hospital psiquiátrico é uma paragem obrigatória para quem alega ser Napoleão, o contrário deveria ser dito de um autor que procure alguma originalidade, mesmo num divertimento inconsequente.
O acrescento daquele exército de dançarinas, varredores de rua e outros freaks pós-modernos é a forma do autor trazer excentricidade a uma historieta de peixe fora de água que ele reconhece ser limitada.
Nenhum arroubo acontece por conta desse grupo terno de tão patético, apenas ajudando a encaminhar Napoleão para o seu plano de sucesso improvável mas que curará o mundo do cancro do extremismo.
Um comentário sobre a política moderna e a sua capacidade de pensar fora dos parâmetros habituais. Houvesse Romain Puértolas seguido este seu comentário...
Colocando este livro ao lado do de Timur Vermes, o início de um padrão surge, o da incapacidade de coerentemente repensar o personagem revivente.
Como peixe fora de água, o Imperador permanecerá sempre um pouco tolo, não compreendendo algumas das mais básicas relações modernas até que o livro acabe.
Para servir a trama, pelo contrário, tem de ser dado como um dos mais inteligentes seres alguma vez a pisar terras gaulesas, capaz de compreender toda a política do Médio Oriente numa única leitura de página da Wikipédia.
A inconsistênca ora serve o avanço da (espécie de ) trama, ora serve a introdução de humor quando o ritmo esmorece. Nunca poderia servir o próprio personagem e, em consequência, um propósito do livro - se fosse descoberto!
Outros defeitos tornam-se graves sem a protecção do riso libertador do sentido crítico, sobretudo no que toca às notas de rodapé.
O autor arrisca usar as notas de rodapé para fazer humor. Apenas por duas vezes em todo o livro, o que faz da ideia uma anormalidade e não uma forma mais de experimentação.
Uma dessas notas de rodapé até passa por um piscar de olhos ao leitor, a outra é apenas um aparte a despropósito, falho no tom e que está no limite da ofensa à inteligência do leitor.
Causar problemas com as notas de rodapé não é exclusivo do autor. A tradutora abusa no número usado, tornando-as intrusivas à leitura em vez de úteis.
Pior, demonsta que não confia na inteligência dos leitores, tendo de lhes explicar um trocadilho óbvio entre eBay e abeille (palavra que a tradutora até deixou no original).
Ou dando informação que é dedutível, como o facto do Hospital Sainte-Anne se dedicar à psiquiatria quando para lá enviam... alguém que se diz Napoleão.
Este último um caso em que o ritmo da leitura é interrompido no momento em que há uma tentativa de fazer humor com um lugar-comum, chamando atenção redobrada para a sua previsibilidade.
A sensibilidade da tradutora para esta questão terá de melhorar. O resto do seu trabalho não merece reparo, garantindo uma leitura escorreita.
Ela permite que se veja que é do autor a subscrição da famosa tirada de Napoleão. Que na literatura, como na política, a estupidez não é um empecilho. Se calhar, para garantir o sucesso, até é a virtude necessária.


Re-Viva o Imperador! (Romain Puértolas)
Porto Editora
1ª edição - Maio de 2017
280 páginas

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