domingo, 29 de outubro de 2017

A sensibilidade do leitor




O Leitor do Comboio é um livro confundido na sua identidade. No entanto aquilo que se pode afirmar sem hesitação é que não se trata de um livro acerca do amor aos livros.
A comercialização deste livro como sendo a expressão escrita da resistência literário no seio da indiferença não é uma falsidade. Apenas uma capitalização do desejo que cada leitor tem de ver defendida a sua cada vez maior raridade por alguém devidamente capacitado.
O livro torna claro que não são os livros o foco do texto, é o leitor. Ou melhor, o declamador. Um homem que no comboio matinal lê páginas avulsas a uma multidão apática.
O que o livro expressa é a importância de um contacto humano, nem que seja por via da voz, tal como fica expresso no facto de duas senhoras se dirigirem ao leitor do título para que ele vá ao lar onde vivem para ler aos idosos da comunidade.
A importância da oralidade não se transmite com facilidade e a brevidade com que Didierlaurent trata os sentimentos gerados não permite que se sinta a vitalidade daquela leitura.
A modulação por parte do leitor e a reacção do público estão ausentes de um texto mais focado nos eventos. Como ausente está a convicção de que uma voz solitária pode mudar as vidas dos outros.
Sobretudo tendo em conta que o que é, inicialmente, lido são páginas singulares que ficaram por destruir na trituradora de livros.
Não há narrativa consequente ou objectivo a que aspirar para os que ouvem a leitura, apenas a eventual melodia da voz.
A curiosidade que possa nascer virá do permanente cliffhanger que uma página avulsa gera. Não será para com os livros - impossíveis de encontrar tendo em conta que o leitor não dá qualquer referência e que as páginas provêm de material acabado de destruir.
Seria uma prova de paixão pelos livros se o protagonista tratasse de os ler às pessoas para os tentar salvar da eminência da destruição.
O que ele demonstra com o que faz é que está deprimido com o seu trabalho. Um trabalho que não produz, destrói.
Nada indica que ele ame os livros, caso contrário ele interrogar-se-ia sobre se todos os livros merecem ser editados para que os autores corram o risco de ser simbolicamente triturados pela falta de leitores.
Sobre se a destruição dos livros para gerar pasta de papel não é parte do normal ciclo de vida dos livros, dos que não tiveram mérito darem lugar a livros que, de outra forma, não veriam a luz dos olhos dos leitores.
No início do livro Jean-Paul Didierlaurent recorrendo a uma imagética forte e a uma vaga definição de contexto, descreveu uma espécie de distopia onde o conhecimento é destruído.
Uma tentativa de elevação de uma ideia incial com fraca sustentação e, ao mesmo tempo, uma tentativa do autor fugir à discussão por via da emoção exarcebada que ele sabe que a destruição de livros gera.
A forma, não o conteúdo, do livro levanta questões sobre a gestão de recursos em função da qualidade.
Até porque aquilo que de mais importante o protagonista lê ao longo do livro são os textos diarísticos de uma higienizadora de casa-de-banho num centro comercial.
Textos lamentosos de um quotidiano de uma cruel banalidade, de azulejos contados de forma repetitiva e visitas regulares que ela conhece pelos hábitos com que defecam.
Quando esses textos surgem, o livro transforma-se numa história de amor por via anónima que acabará num estranho final feliz ao qual o processo inicial de leitura já não tem qualquer ligação.
A história de amor só aprofunda a noção de que a leitura era a fuga ao ambiente opressivo do seu trabalho, não um desígnio de vida: como o próprio protagonista diz de início, ele não faz a leitura para aquelas pessoas que lhe agradecem...
O que ele encontra é uma alma-de-trabalhadora gémea. Alguém que lida com merda diariamente, o mesmo que ele vê como produto do processo da máquina.
O autor insiste obsessivamente nessa ideia, de que o processo da trituradora é uma digestão de livros de que resulta um horrível dejecto.
Ele quer reforçar a sensação de nojo que a máquina causa mas vai longe demais na elaboração das descrições.
Logo ao capítulo 5, os fiapos acinzentado da Coisa já eram expelidos "sob a forma de grandes cagalhões fumegantes", escusavam por isso de caírem soando a "assustadores peidos húmidos".
Volta ao mesmo na página 82, quando o protagonista se queixa dos "peidos nauseabundos que a Coisa lhes lançava", martelando a ideia em quem lê em vez de lha sugerir num processo que permitisse uma identificação metafórica à vida de cada um.
O autor está obrigado a fazer do mundo externo um inferno nauseabundo para que os textos dentro do texto possam sobressair pela sua luminosidade.
Só que esses textos, sobretudo os da apaixonada do protagonista, são demasiado rococós, falsos do esforço em "fazer bonito", para que isso sugira a poesia que salva do cinzentismo.
O esforço não faz com que no livro se infiltre magia no real por via da própria literatura, mesmo se há momentos de enorme humanidade, ao mesmo tempo irreal e trágica.
Só que se há impressão que o autor deixa a propósito dos seres humanos é a de falta de sensibilidade quando compara uma sessão de speed dating com 7 encontros a uma violação colectiva.
Um despropósito maior quando o faz pela voz da sua personagem feminina, ela própria escritora embrionária.
Se a sensibilidade do leitor do comboio não é afectada por tão mal aplicada comparação, espera-se que sensibilidade do leitor deste livro seja, caso contrário há que perguntar se a leitura chegou a moldar a sua visão do mundo.


O Leitor do Comboio (Jean-Paul Didierlaurent)
Clube do Autor
2ª edição - Março de 2017
196 páginas

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