A premissa de uma mulher encontrar em casa - sem saber a origem - um livro escrito por um desconhecido mas que descreve um episódio da sua vida que quer manter escondido tem enorme potencial.
Potencial para ir longe demais, criar algo tão extravagante que para ser bem sucedido teria de estar nas mãos de Bolaño, Burroughs ou Kafka.
Ou para ser um thriller psicológico e erótico bastante satisfatório, ainda que sem o rasgo de génio que se esperaria de um daqueles autores.
Pelos parágrafos anteriores já deve ter ficado claro que o livro não cumpre com o seu potencial.
O livro nem pode ser considerado um thriller, estando mais perto do melodrama - na sua versão de má qualidade que resulta numa telenovela.
Se há uma ideia de mistério ou de perseguição dentro dele é porque esse é mecanismo mais simples de levar a história por diante - mesmo sem domínio das ferramentas que lhe são essenciais.
Duas histórias correm paralelas, a de uma traição há muitos anos calada e a perda de um filho.
A intersecção das duas é a inevitabilidade que o leitor tem de querer perceber para se manter fiel ao livro.
Qual de entre as duas é a causa para que a outra seja sua consequência não se sabe, mas aquilo que acompanhamos é a forma como Stephen manipula a vida de Catherine através do livro ("O perfeito desconhecido").
Ele é, de certa forma, o autor do livro e o pai de um rapaz que morreu pouco depois do evento que "O perfeito desconhecido" narra.
Esse evento é um caso tórrido entre uma mulher casada deixada sozinha com o filho de cinco anos durante umas férias em Espanha e o jovem rapaz que ela vê interessado nela. Ou que ela seduziu de forma voluntariosa.
O que o livro dentro do livro narra é uma aproximação para esse caso vinda da imaginação de alguém desesperado.
Uma versão baseada num rolo de fotografias explícitas e na falta de explicações para a morte do filho.
O que está no livro faz de Catherine uma vilã, uma predadora sem coragem de enfrentar os pais do rapaz que deixou morrer.
Quando mergulhamos no ponto de vista dela, aquilo que descobrimos é a sua luta para manter escondida da família a sua ligação ao livro e o que se passou naquele Verão em Espanha.
Por isso a perspectiva é a de que ela é culpada de algo, embora não haja certeza do quê, porque apesar de ser uma bem sucedida realizadora de documentários, é incapaz de dialogar com o marido ou delinear um plano lógico.
O jogo de Renée Knight é o de manter uma dúvida de carácter acerca de Catherine, logo uma dúvida sobre o quanto ela possa merecer o que lhe sucede.
Isso desvia Stephen de uma avaliação mais peremptória, um homem pacífico que muitos anos após a morte do filho decidiu levar a cabo uma estratégia de perseguição violenta, não só a Catherine mas também ao filho desta: de quem se torna amigo no Facebook para lhe mostrar as fotos da mãe com outro homem.
Dois tempos distintos para a acção do livro. Dois eventos traumatizantes e duas acções de moral dúbia.
O leitor deveria estar mantido em suspenso sobre quem vê como vilão e merecedor de castigo. No final, nem esse aparente jogo resiste.
A autora manteve o leitor em absoluta ignorância para depois lhe atirar com uma revelação que é de uma violência atroz para as suas personagens e uma cobardia autoral.
Sem revelar aquilo que aconteceu, a verdade do evento naquelas férias espanholas garante que a balança se desequilibra em favor de Catherine: ela acaba como uma heroína estóica.
A partir daí, Stephen é um homem mau que tirou ilações de uma situação que conhecia mal e o seu filho fora alguém ainda pior.
Só que, de forma estúpida, há uma redenção para ele. Stephen deixa a sua casa a Catherine como pedido de desculpas. E o filho de Catherine que se tentara matar acorda do coma e o final feliz remata a história.
Tristemente fica por explorar a verdadeira dúvida moral que o livro poderia conter, a do significado da morte do filho de Stephen - um vilão por direito próprio, de acordo com a reviravolta vinda de lado nenhum - que morreu depois de ter salvo o filho (quando criança) de Catherine no momento em que ele estava aflito no mar.
O melodrama barato fica concluído com ideias demasiado definidas de bons e maus, de injustiça e expiação. E tudo graças a um expediente que periga na sua (indevida) banalização.
Isto vem servido por uma linguagem descarnada e por descrições sempre demasiado funcionais que revelam a origem de guionista de Renée Knight.
A leitura é quase toda assente nos carris das acções dos personagens e as suas vidas interiores são descritas de forma directa como se a dar indicações claras (e, diria, demasiado óbvias) a actores.
Trata-se de um livro para o qual se deve fazer uma séria advertência ao leitor (expressão mais próxima do que deveria ser o título ambíguo do livro, embora reconheça a dificuldade de tradução com obtenção de um título apelativo).
Advertência de que se sentirá enganado por um livro que não sabe o que fazer com as suas ideias, que faz as personagens comportarem-se de acordo com as necessidades da trama e que esconde o jogo de forma inane para depois justificar a etiqueta que ajudará a vendê-lo.
Pura Coincidência (Renée Knight)
Suma de Letras
1ª edição - Outubro de 2015
304 páginas