domingo, 28 de fevereiro de 2016

Advertência ao leitor

A premissa de uma mulher encontrar em casa - sem saber a origem - um livro escrito por um desconhecido mas que descreve um episódio da sua vida que quer manter escondido tem enorme potencial.
Potencial para ir longe demais, criar algo tão extravagante que para ser bem sucedido teria de estar nas mãos de Bolaño, Burroughs ou Kafka.
Ou para ser um thriller psicológico e erótico bastante satisfatório, ainda que sem o rasgo de génio que se esperaria de um daqueles autores.
Pelos parágrafos anteriores já deve ter ficado claro que o livro não cumpre com o seu potencial.
O livro nem pode ser considerado um thriller, estando mais perto do melodrama - na sua versão de má qualidade que resulta numa telenovela.
Se há uma ideia de mistério ou de perseguição dentro dele é porque esse é mecanismo mais simples de levar a história por diante - mesmo sem domínio das ferramentas que lhe são essenciais.
Duas histórias correm paralelas, a de uma traição há muitos anos calada e a perda de um filho.
A intersecção das duas é a inevitabilidade que o leitor tem de querer perceber para se manter fiel ao livro.
Qual de entre as duas é a causa para que a outra seja sua consequência não se sabe, mas aquilo que acompanhamos é a forma como Stephen manipula a vida de Catherine através do livro ("O perfeito desconhecido").
Ele é, de certa forma, o autor do livro e o pai de um rapaz que morreu pouco depois do evento que "O perfeito desconhecido" narra.
Esse evento é um caso tórrido entre uma mulher casada deixada sozinha com o filho de cinco anos durante umas férias em Espanha e o jovem rapaz que ela vê interessado nela. Ou que ela seduziu de forma voluntariosa.
O que o livro dentro do livro narra é uma aproximação para esse caso vinda da imaginação de alguém desesperado.
Uma versão baseada num rolo de fotografias explícitas e na falta de explicações para a morte do filho.
O que está no livro faz de Catherine uma vilã, uma predadora sem coragem de enfrentar os pais do rapaz que deixou morrer.
Quando mergulhamos no ponto de vista dela, aquilo que descobrimos é a sua luta para manter escondida da família a sua ligação ao livro e o que se passou naquele Verão em Espanha.
Por isso a perspectiva é a de que ela é culpada de algo, embora não haja certeza do quê, porque apesar de ser uma bem sucedida realizadora de documentários, é incapaz de dialogar com o marido ou delinear um plano lógico.
O jogo de Renée Knight é o de manter uma dúvida de carácter acerca de Catherine, logo uma dúvida sobre o quanto ela possa merecer o que lhe sucede.
Isso desvia Stephen de uma avaliação mais peremptória, um homem pacífico que muitos anos após a morte do filho decidiu levar a cabo uma estratégia de perseguição violenta, não só a Catherine mas também ao filho desta: de quem se torna amigo no Facebook para lhe mostrar as fotos da mãe com outro homem.
Dois tempos distintos para a acção do livro. Dois eventos traumatizantes e duas acções de moral dúbia.
O leitor deveria estar mantido em suspenso sobre quem vê como vilão e merecedor de castigo. No final, nem esse aparente jogo resiste.
A autora manteve o leitor em absoluta ignorância para depois lhe atirar com uma revelação que é de uma violência atroz para as suas personagens e uma cobardia autoral.
Sem revelar aquilo que aconteceu, a verdade do evento naquelas férias espanholas garante que a balança se desequilibra em favor de Catherine: ela acaba como uma heroína estóica.
A partir daí, Stephen é um homem mau que tirou ilações de uma situação que conhecia mal e o seu filho fora alguém ainda pior.
Só que, de forma estúpida, há uma redenção para ele. Stephen deixa a sua casa a Catherine como pedido de desculpas. E o filho de Catherine que se tentara matar acorda do coma e o final feliz remata a história.
Tristemente fica por explorar a verdadeira dúvida moral que o livro poderia conter, a do significado da morte do filho de Stephen - um vilão por direito próprio, de acordo com a reviravolta vinda de lado nenhum - que morreu depois de ter salvo o filho (quando criança) de Catherine no momento em que ele estava aflito no mar.
O melodrama barato fica concluído com ideias demasiado definidas de bons e maus, de injustiça e expiação. E tudo graças a um expediente que periga na sua (indevida) banalização.
Isto vem servido por uma linguagem descarnada e por descrições sempre demasiado funcionais que revelam a origem de guionista de Renée Knight.
A leitura é quase toda assente nos carris das acções dos personagens e as suas vidas interiores são descritas de forma directa como se a dar indicações claras (e, diria, demasiado óbvias) a actores.
Trata-se de um livro para o qual se deve fazer uma séria advertência ao leitor (expressão mais próxima do que deveria ser o título ambíguo do livro, embora reconheça a dificuldade de tradução com obtenção de um título apelativo).
Advertência de que se sentirá enganado por um livro que não sabe o que fazer com as suas ideias, que faz as personagens comportarem-se de acordo com as necessidades da trama e que esconde o jogo de forma inane para depois justificar a etiqueta que ajudará a vendê-lo.


Pura Coincidência (Renée Knight)
Suma de Letras
1ª edição - Outubro de 2015
304 páginas

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Culinoiria

Sarilhos nas Caraíbas não me soube tão bem quanto Um osso na garganta, talvez porque o efeito de novidade se tinha desvanecido e a expectativa estivesse num patamar mais elevado.
O que numa homenagem ao noir com o espírito de leitura desenfreada capaz de fazer uma mulher saltar da mota ainda nua a disparar uma arma automática quer apenas dizer que me diverti quase tanto como com o livro anterior.
Desse livro para este desaparece a insistência maior nos elementos da culinária profissional. Pelo contrário, regressa Tommy e a sua namorada Tracy.
Fugidos dos mafiosos nova-iorquinos, o casal passou de protagonista a complemento de um outro casal de quem se tornam amigos.
A tentarem viver as suas vidas longe dos seus contratantes, Henry e Frances é um casal de assassinos que vive feliz e apaixonado num paraíso na Terra.
Só que o "Padrinho" que Henry falhou em matar veio esconder-se também ali e Henry quer perceber se as coisas entre eles estão bem recorrendo a Tommy e Tracy que trabalham para ele.
O que daqui resulta é um livro sobre camaradagem, muitas vezes parecendo um mero passeio de férias em que Bourdain dá conta de como as Caraíbas são o local que devemos querer visitar.
Um local onde até foragidos e assassinos podem encontrar forma de serem felizes e apreciados, numa normalidade com uma fasquia cimeira.
Só que quando o livro não se dedica às viagens, lança-se com toda a imaginação siderada do autor para cenas de acção que deviam fazer a inveja de Hollywood.
Um grupo de capangas vindos de Nova Iorque contra um casal e um velho mafioso, plena loucura de tiros e sangue em que Bourdain se delicia, o que se transmite ao leitor.
E o melhor está nas trocas entre os casais, com bastante humor negro e ainda mais jogos de duplo sentido que fazem lembrar o melhor do cinema, aquela idade de ouro em que eram pelos diálogos que os actores brilhavam, não fazendo prisioneiros na hora do duelo de palavras.
Para acomodar todos estes elementos, Bourdain é um pouco liberal com a trama, certamente deixando alguns detalhes em aberto.
Valeria a pena cobrar-lhe tal como um erro se não fosse o facto disso ajudar às reviravoltas e a um efeito de esticão súbito que a história nos dá de poucas em poucas páginas.
Afinal falamos de um noir, o que a julgar por um dos seus mestres deve ser um livro escapista e pouco obediente em que o ritmo e o ambiente pesa mais do que o restante.
O chef anda lá perto!
Descomplicado e tresloucado, um policial para ler em qualquer local - ainda que, de forma mais provável, na praia tenha maior impacto - sentindo a dose de adrenalina que ele transmite e regozijando-se com ela.
Se estes livros são o que Anthony Bourdain era capaz de escrever no tempo livre de quando era um chef de topo, gostava de saber o que ele alcançaria dedicando-se à literatura a tempo inteiro.
Já conhecendo bem as suas obsessões e sentindo que Bourdain encontrava aqui uma voz sistemática - tudo isto por vezes ainda traz para os seus programas televisivos - creio que o resultado podia aproximar-se do notável.


Sarilhos nas Caraíbas (Anthony Bourdain)
Ambar
1ª edição - Outubro de 2003
324 páginas

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Corte e colagem

Este é mais um livro em que uma rapariga está no sítio errado à hora errada, apenas para descobrir que é extraordinária e, contra a sua vontade, tornar-se na peça mais importante de um xadrez político.
Muda o contexto ou variam as circunstâncias. Os autores continuam a replicar um mesmo livro que o público alvo consome sem hesitação ou critério.
Um público alvo que é o de mulheres (mais ou menos perto do momento em que deixaram de ser raparigas) que continuam a clamar por heroínas corajosas e independentes. Mas cuja maturidade deixa algo a desejar!
Uma protagonista - uma heroína, até lhe podemos chamar - escolhida pelo acaso e que desde logo merece ser o pilar da história... e da conciliação das duas castas deste mundo... e da liderança da resistência...
Ela que se deixa influenciar vezes demais pelos ciúmes e que mostra pouca piedade mesmo quando reflecte que a dor dos familiares daqueles em cujo assassinato participará pode ser equiparável à sua.
O livro centra-se na protagonista, afunilando a narrativa de tal forma que o mundo à volta nunca chega a ser definido.
Fá-lo sem uma justificação credível e apenas na expectativa de que ela provará a justeza de ser escolhida no final... da trilogia, claro, pois há que fazer render as páginas.
Gostaria de invocar o seu poder - criar e manipular electricidade - ou a sua existência dividida entre dois mundos para dizer que ela interessa como protagonista. Só que o seu maior feito é o de conseguir encantar dois príncipes irmãos e criar um triângulo amoroso.
O melodrama barato não pode faltar a estes livros e, embora neste caso, o mesmo seja desfeito com uma reviravolta, a autora logo estabelece a aparência de um outro durante o cliffhanger que encaminhará alguns para o segundo livro.
Sobre a reviravolta só se pode dizer que é das mais gastas de toda a ficção e que é perceptível mal o mais jovem dos príncipes - logo, sem acesso ao trono - se mostra favorável à resistência enquanto a sua cruel mãe - segunda mulher do rei e suspeita de ter assassinado a antecessora - não lhes dá descanso.
Para que quer este tipo o trono para além de perpetuar o status quo não se sabe muito bem já que a caracterização não é o forte da autora.
Nem a descrição, que vai sempre longe demais. Uma adjectivação mais ou um elemento descritivo extra mostram que a autora se esforça em demasia ao invés de confiar na economia e na capacidade dos seus leitores. Parece o texto de um estudante a querer dar melhor imagem do que escreve e a parecer que está a embelezar o vazio das suas ideias.
Ou sequer a construção de mundos, uma amálgama de Época Medieval, Revolução Industrial e salpicos da Idade da Informação. Com poderes concedidos pela genética.
Castelos e famílias feudais. Opressão esclavagista sobre os trabalhadores. Vigilância e manipulação mediática.
Mais exactamente, indefinição do tempo em que a história se passa para permitir que tudo possa lá ser incluído sem preocupações de consistência.
Tudo com lamirés rápidos para não complicar, porque num país em guerra há cerca de cem anos, só a recém aparecida Resistência (em modo terrorista) causa problemas e tudo se passa na corte real.
Qual é então o forte da autora? Creio que é dar a aparência de referenciar as mais famosas sagas de sucesso e servir algo que iludirá alguns como tratando-se de algo novo.
Usar um esquema narrativo de distopia ao jeito de Os Jogos da Fome, acrescentar-lhe a ideia de transgressão nas relações (altamente suavizadas) das famílias nobres  de A Guerra dos Tronos e diferenciar com os poderes e o receio da sua disseminação de X-Men.
Corte e colagem! E a autora é boa o suficiente nos trabalhos manuais para ser a estrela por uns tempos, possivelmente vender os direitos do livro a um estúdio de Hollywood e depois reformar-se quando lhe exigirem uma ideia original para um novo livro.


Rainha Vermelha (Victoria Aveyard)
Saída de Emergência
1ª edição - Setembro de 2015
352 páginas

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Duas hipóteses

O livro de Paolo Sorrentino teve origem no argumento do seu filme, numa inversão que costuma ser mais habitual em blockbusters.
A versão literária da história do filme costuma servir para potenciar os lucros mas o caso d'A Juventude é o aproveitamente de uma sensibilidade pessoalíssima.
Claro que cada um apreciará ou não essa sensibilidade, sobretudo se tiver visto o filme antes de chegar ao livro.
Quem tiver achado o filme mau deverá evitar por completo o livro pois o seu defeito é, precisamente, ser fiel a esse.
O livro é o argumento do filme, como fica bem legível em diversos momentos que são como referências apontadas aos vários técnicos e actores que lhe viriam a dar forma.
O polimento do texto ficou pela metade, retirando-lhe indicações cénicas, mas não o levando por completo de guião a novela.
Esperava-se que Sorrentino tivesse proporcionado mais algum desenvolvimento à sua aproximação despojada à história.
Não apenas descrições que substituíssem o que a imagem proporciona, também algo que nos desse maior discernimento acerca dos personagens.
Aquilo que os actores conseguem transmitir ao serviço do realizador e que como escritor ele teria de expressar de uma maneira mais explícita.
Em contrapartida, numa tentativa de percepcionar o livro sem a sua ligação ao filme - e ignorando aquilo que o denuncia como tendo origem num argumento - podemos encontrar um conto que tende para um estado de liberdade.
Liberdade de amarras estruturais, que procura livrar-se de tudo excepto da colocação de personagens singulares em cenários sugestivos quer literaria quer cinematograficamente. Como se fosse uma aproximação leve a Thomas Mann (e Luchino Visconti) ou Federico Fellini.
Uma aproximação que rejeita a densidade porque quer expressar na forma do próprio texto o niilismo sábio - e egoísta! - dos personagens.
A novela tenta dar forma às suas discussões que não chegam a ser filosóficas, são apenas procuras de coordenar duas formas distintas de desistência perante o mundo.
Entre estes dois julgamentos a que se submete A Juventude há espaço para outras tantas conclusões.
De que este livro é uma curiosidade que dá um vislumbre do processo de criação que leva a um filme.
De que Paolo Sorrentino pode ser um escritor interessante caso procure escrever livros e não adaptar guiões.


A Juventude (Paolo Sorrentino)
Jacarandá Editora
1ª edição - Novembro de 2015
144 páginas

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Menos viciante, isso sim

Tirando a actualidade que um thriller em torno de um caso de doenças calamitosas transmitidas por parasitas tem, não há realmente razão para que este livro tenha direito a uma tradução no nosso país.
Até porque se a história começa por ter uma base científica, esse contexto vai-se desvanecendo à medida que o livro se torna numa enorme "sequência de acção".
Embora a acção permita a Nick Louth escrever algumas interessantes passagens sobre a cidade de Amesterdão, não lhe permite muito mais.
Desenvolvimento de personagens é inexistente, a menos que se considere que transformar um artista num herói de acção no decorrer de um único capítulo - e para assim continuar o resto do livro - se assemelha a tal.
Um herói de acção ao nível de John McClane: esmurrado, mordido por cães, tratado com todo os graus de violência e logo cerra os dentes ou dorme oito horas e está pronto para outra.
O livro torna-se ridículo a partir do momento que o namorado da cientista que ia fazer uma revelação extraordinária sobre o combate à Malária se lança na pista do seu desaparecimento.
Sendo que o livro tem de ir em crescendo de intensidade (seja lá o que for que isso queira dizer neste caso...) até ao final, a coisa torna-se mais absurda com o envolvimento das melhores equipas tácticas de combate do mundo.
Verdade seja dita que há interrupções ao inclemente jorrar de cenas de acção: os excertos de um velho diário da cientista desaparecida.
São relatos da sua passagem por África onde tentou ajudar a combater a doença e onde descobriu a fealdade dos comportamentos que muitos por lá se sentem no direito de ter, das guerrilhas locais às empresas farmacêuticas internacionais.
Os excertos são vívidos e bastante incisivos, com descrições de crueldade quer psicológica quer física.
Nesses breves momentos Louth dá mostras de algum talento como escritor, muito embora a pausa de diálogos sofríveis e de detalhadas descrições (causadoras de bocejos) possa dar azo a uma memória mais positiva do que tais excertos merecem.
Afinal de contas, esses excertos acabam por ser muito estranhos porque a sua autora ficcional os escreve com uma precisão de detalhes que roça o maníaco.
Ela não só descreve o que aconteceu muitos dias depois de ter acontecido como expressa com muita eloquência os momentos em que esteve à beira de ser violada ou morta - que deveriam ser traumatizantes e capazes de fazer esquecer alguns detalhes, pelo menos.
O que o diário vai revelando é a complexidade de Erica que nem o próprio Max - o namorado heróico - conhece e que a tornam num pouco mais do que uma vítima inocente.
O livro quer fazer dessa descoberta um foco adicional para além dos desenvolvimentos da busca.
Como nunca nos interessamos por conhecer os personagens, também isso falha. A par da reflexão moral sobre as práticas das farmacêuticas e a cumplicidade com a violência anónima no continente africano.
Ao contrário do que a tagline do livro quer fazer crer em toda a sua arrogância, este livro pode ser o "mais" em muitos aspectos, mas todos eles contrariam o adjectivo usado.


Febre (Nick Louth)
Jacarandá
1ª edição - Julho de 2015
376 páginas

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

À procura de fôlego

Este livro é uma revelação do potencial de Pedro Vieira e, na mesma medida, do seu desencontro com a matéria ficcional que lhe será mais apropriada.
Há um estilo já definido no trabalho de Pedro Vieira, um em que ele se aproxima da metalinguagem.
O autor imiscui-se na vida das suas criaturas, falando do universo que está para lá delas e procurando o jogo referencial que permita a expressão do seu processo e até algumas graças por conta da sua intervenção omnipotente.
Tudo isto funciona melhor em relatos breves e, por isso, os capítulos assemelham-se muito a crónicas em que a ficção e a realidade se misturam em serviço da arte de quem escreve.
Os personagens acabam mal servidas, incapazes de evoluir porque não há uma visão estrutural para o desenrolar do livro,
Há a história de um romantismo trágico que traz para os subúrbios de Lisboa uma chama da grandiosidade sentimental Russa.
As histórias individuais no seio da história do livro tentam convocar tudo o que caracteriza o Portugal dos anos 1980 até hoje, numa mistura do pior que, inevitavelmente, copiámos do resto do mundo e do que já era intrinsecamente nosso e nunca mudará, para mal dos nossos pecad(ilh)os.
Só que a tentativa de retrato do subúrbio para estabelecer uma ideia do Portugal das últimas décadas acaba por levar a que os episódios prevaleçam sobre a coerência humana dentro do romance.
Ou talvez seja das ideias empoeiradas essa falta de dimensão dos personagens, tornados em arquétipos porque a grandiosidade romanesca não consegue resgatar nada do que está no interior de lugares-comuns sobre os subúrbios.
Poderá ser uma conclusão errada, mas os subúrbios não parecem ser o domínio de Pedro Vieira, que parece antes conhecê-los de ideias repetidas ao longo dos anos.
As histórias que ele ouviu de lá originárias acabaram por criar um cenário mítico de falhanço onde ele acreditou poder reinterpretar a Literatura e a Portucalidade.
A tentativa pode bem ser meritória mas não foi aqui que o autor o conseguiu.
Como treino para o seu estilo e uma aproximação a um trabalho de fôlego longo pode, pelo contrário, ter sido um sucesso.


Última Paragem, Massamá (Pedro Vieira)
Quetzal Editores
Sem indicação da edição - Fevereiro de 2011
208 páginas

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Mal digerido



Este é um livro de curiosidades que vale pela sua premissa, de falar da História a partir do ponto de vista dos pratos que a acompanham.
Promissor e apelativo, como o título que os autores escolheram, num tom de leveza que, no limite, permite fazer conversa à mesa depois da preparação da receita.
Parte do livro responde a essas expectativas mas a selecção de receitas tem problemas por entre as opções justificadas.
Desde logo porque esta não viaja bem para fora da Suécia, com vários acontecimentos cuja importância não atravessa a fronteira.
São cinco receitas (não conto com a refeição servida quando Marie Curie foi receber o seu segundo prémio Nobel) e não creio que alguém manifeste interesse no que os ABBA comeram para celebrar ganharem o Festival da Eurovisão, o que foi servido na boda dos reis da Suécia, que escolha alimentar garantiu à Suécia o seu primeiro campeão mundial de boxe ou como tentaram alimentar as pessoas durante o assalto ao banco em Estocolmo.
Mesmo que a refeição que matou Eurico XIV possa ter algum interesse mais pela trama política que a "cozinhou", não faz falta ao livro.
As vistas curtas acerca do potencial de edição deste livro fora do país dos seus autores não é o problema maior do conjunto de receitas.
Falta lógica na inclusão do sumo que Michael Jackson bebia todas as manhãs ou a receita de sandes de atum que os Iron Maiden consomem e que se resume a pão branco, manteiga e atum em lata com a indicação para deixar cada um prepará-las por si mesmo.
Sobretudo considerando que na introdução se afirma que ao longo do livro a comida está num patamar secundário de um conjunto de acontecimentos entusiasmantes, excitantes e grandiosos.
Raros são os acontecimentos que justificam tal profusão de adjectivos.
Muitas vezes os autores querem falar de algumas personagens históricas e para tal encontraram uma justificação.
Uma receita que Kurt Cobain deixou escrita num caderno ou a receita de Rosa Parks para panquecas são casos em que a comida nem elemento secundário chega a ser.
Saber o que foi servido como prato principal naquela que ficou recordada como "A Festa do Século" está bem mais perto do que o livro deve ser, caso para uma pequena resenha histórica onde a comida é capaz de despertar interesse à distância de tantos anos.
Pela extravagância que esperaríamos ver associada à festa queremos saber o que lá se comeu - e quem sabe se reproduzir para impressionar amigos. Mas a funcionalidade também desperta o interesse.
Saber o que comeram os alpinistas para atingir o topo do Everest ou o que permitiu a Charles Lindbergh cumprir com a travessia do Atlântico chama a atenção pelo que essas escolhas ajudaram a alcançar.
Saber qual foi a primeira refeição na Lua ou a última refeição no Titanic balizam o livro com patamares a que a maioria das escolhas não alcança.
Conclui-se que falta ao livro um critério de selecção coerente, mesmo que ora fosse a receita a dar importância ao acontecimento ou o acontecimento a tornar o prato então servido numa curiosidade.
Tal é mais penoso perante a qualidade do livro, um álbum de capa dura onde o cuidado é máximo para melhor servir a qualidade das fotos que tornam os pratos em verdadeiras estrelas.
Na composição das fotos há que destacar o cuidado colocado na reconstituição de um cenário que remeta para o contexto em que o prato foi consumido e cujos pormenores em seu redor revelem as pessoas que a saborearam.
Como na imagem que encima o texto, em que o gulache partilhado entre inimigos durante o Natal de 1914 surge servido nos materiais disponibilizados aos soldados entricheirados.
Um cuidado de dar vida aos pratos que culmina, curiosamente, na ausência de comida, com uma refeição de Ano Novo de François Miterrand que já só tem o guardanapo sobre o prato.
Afinal tratou-se de uma refeição tão decadente e politicamente incorrecta - uma rara sombria deve ser alimentada a figos para acabar afogada em Armagnac - que não deve ser cozinhada apenas para o efeito de ilustração. Além de que se pode entender neste guardanapo caído sobre o prato o esconder de uma certa culpa cujo gosto fica na boca depois de tal repasto.
Um travo amargo como o de imaginar o que este livro poderia ter alcançado se todos os pratos estivessem à altura das fotografias que os servem.


O Macarrão de Estaline (Jon Rönström e Anders Ekman)
Bertrand Editora
1ª edição - Novembro de 2015
146 páginas