domingo, 18 de janeiro de 2015

Força das mulheres

Este é um daqueles mistérios de uma aldeia inteira que se revelam melodramas feios, cheios dos pesadelos escondidos na alma por culpa dos desgostos escondidos no quarto.
Uma história um pouco vaga acerca do Tempo, para a qual se pode fazer o esforço de tentar localizar o período em que decorre com precisão através dos seus detalhes, mas que funciona ainda melhor quando é deixada num limbo difuso,
A aldeia perdida no tempo - e no espaço - funciona como o retrato abrangente de um país que, desde 1946 quando surgia como uma bela maçã podre na capa da Time e até hoje, continua a estar preso entre o Passado enraizado e a perspectiva de um Futuro que lhe é oferecido.
Um pé em cada margem do rio do Tempo, aproveitando a metáfora em que o próprio livro estabelece a sua geografia, querendo cair para aquela onde tudo é imutável e regido pela imagem de Fé que dá poder mesmo aos insignificantes enquanto da outra os chamam à razão e lhes oferecem a possibilidade de descobrir as possibilidade do mundo.
O autor criou um lugar com uma história que o faz valer por si próprio e que assume
Um lugar que conquista através do molde de cada uma das vidas individuais que dentro dele se cruzam e que tocam o cerne contido naquelas três mulheres que são em simultâneo familiares e estranhas entre si.
Mulheres que se viram sempre sujeitas às circunstâncias da vida, mesmo quando julgavam tomar opções em seu próprio favor.
Uma mãe e duas filhas levadas a concepções próprias do que devia ser o seu modo de vida ao ponto de se afastarem umas das outras.
Ainda que a mãe rente reatar a ligação que antes tinham entre as três, não são mais mãe e filhas, são três mulheres de personalidade vincadas.
Mulheres de força por se terem tornado mulheres à força, tentando impor aos restantes a sua vontade num combate entre mãe e filha que é também o combate entre a sabedoria e a crendice.
A sabedoria que Júlia tentou passar às filhas e ainda tenta passar às mulheres da aldeia (se não mesmo à aldeia inteira) e a crendice com que Adelaide manipula a aldeia em seu favor mas em desfavor da própria terra.
Uma velha costureira que se transforma numa sábia através das páginas de citações do Reader's Digest e uma mulher que se evade à violência doméstica através de um exército (literal) de filhos são apenas os dois exemplos maiores de uma aldeia cheia de grandes personagens - e personagens femininas.
Esta é a capacidade que mais se destaca de entre aquelas que a pena do autor nos mostra, a de dar vida às suas personagens, partindo do quotidiano banal (o que não é sinónimo de aceitável) para as fazer expressar o extraordinário.
Ainda mais significativo por ser uma capacidade de um autor masculino para criar tantas e tão distintas personagens femininas memoráveis.
De João Felgar há também que dizer que é um escritor cheio de promessa - ou não fosse este o seu primeiro livro - mas já com as ferramentas de uma sabedoria literária que lhe permitiram escrever um livro memorável.
Com elas consegue uma exímia gestão estrutural, rítmica e emocional: revelando ou guardando a informação (sem artificiais cliffhangers) conforme isso melhor funciona para que o leitor esteja em sintonia com as vidas das personagens e seja melhor servido pelo seu conhecimento da história à medida que esta se desenrola.
Tenha-lhe tudo isso vindo da experiência própria ou de uma rica imaginação em sintonia com o país em que vive, é uma capacidade que se encontra com mais raridade do que gostaríamos e que necessita de um talento puro para ganhar forma a partir da escrita.


Terra de Milagres (João Felgar)
Clube do Autor
1ª edição - Setembro de 2014
280 páginas

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