Pouco tempo depois dos pulps ficcionais, os pulps reais. Sem necessidade de comparação entre eles, mas com grande apreço por ambos.
Neste conjunto de histórias curtas o teor policial torna-se muito abrangente. Há histórias que são verdadeiros dramas sofridos, outras comédias de remates vários. Há amores desesperados e crimes geniais.
São relatos que, acima de tudo, têm de proporcionar excitação ao leitor, que vai sentado em sossego mas vivendo a tensão de não libertar os seus humores em frente dos estranhos com quem partilha caminho.
As histórias que relata Juca, o Menjou da Estefânia (já ficamos com o bigode bem imaginado a acompanhar o nome), têm de ser as melhores, para manter o repórter interessado e para este, depois, manter o leitor interessado.
Não bastam as emoções fortes, é preciso que se reconheça a alma portuguesa, tal como esta se revela para quem ocupa o ponto de observação de condutor de um táxi.
Desse ponto de vista, a cidade enche-se de ingenuidade e de malvadez, de simpatia e de virulência. A cidade é já um universo de grande escala que só o movimento do táxi permite compreender nas suas muitas ligações internas.
Há mais da alma portuguesa no trabalho de Reinaldo Ferreira do que a passagem das aguerridas emoções nacionais ao papel. Há a maneira de as contar.
Reinaldo Ferreira passa ao papel a linguagem típica de quem relata vivendo as emoções que vai transmitir. De tal forma é verdadeira e extraordinária a exaltação da oralidade pela escrita que temos de admitir que só no papel pode ser assim tão bom o "contar". Trabalhado até à naturalidade mas com talento inato, a linguagem é mais verdadeira na folha do que alguma vez se ouviria no interior de um táxi ou à mesa de um café em tertúlia.
Pelo talento de Reinaldo Ferreira, vale a pena propôr que a oralidade - não só o que conta mas como o contam - dos chauffeurs sejam propostas a Património Imaterial. Da Humanidade ou dos que gostam de uma boa história.
Esses destaques explicam a longevidade do texto, mas não chegam a olhar para a relevância histórica.
O trabalho de Reinaldo Ferreira não era o de escritor, era o de vendedor de texto. O espaço que ocupava valia-lhe o dinheiro com que sobrevivia.
Mas se o seu talento mostra que era, de facto, escritor, a sua inteligência coloca-o na vanguarda do seu trabalho como "escritor a metro" (e leva-o a superar esse papel).
Ele trata de criar uma situação ficcional perfeita para referenciar o trabalho real que o ocupava.
Num exercício de metalinguagem em que trata de avisar o leitor, ele explica: "Já ficam, pois, os senhores a saber: todas as histórias-vividas ... que hoje começo a contar são histórias-táxi, histórias a metro ... uma bandeirada a escudo e meio - fora a gorjeta...".
O escritor ficciona o seu papel para com o taxista como o do editor para consigo, pagando pelo tamanho e sem real atenção à qualidade.
Defende-se o escritor mostrando que é um homem com um honesto trabalho pago, para quem o tempo é tão valioso que não se pode dar por parado. A bandeirada está sempre a contar, como as palavras têm de estar sempre a ser debitadas.
Mas também ataca alertando para o reconhecimento que merece o bom trabalho feito debaixo de pressões e que tem de encontrar um público mais fiel que não esteja disposto a aceitar qualquer texto só porque traz um ou dois parágrafos de emoções fortes.
Reinaldo Ferreira merece, por isso, as honras que lhe sejam dadas, por mais pequenas (e tardiamente reconhecidas, no caso deste leitor) ou esporádicas.
Foi um escritor que fez e que se fez num meio votado a um certo desprezo e que se mantém vibrante.
Memórias de um Chauffeur de Táxi (Reinaldo Ferreira)
Livros do Brasil
1ª edição - Março de 2007
216 páginas
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