Cada vez mais a classificação de policial se torna numa forma fácil de colocar os livros à venda e de atrair público.
As limitações da etiqueta tornam-se evidentes quando se lê um livro como Ninguém Quise Saber em que o retrato da investigação policial é apenas mais um elemento de uma composição maior.
A psicologia de um grupo particularmente interessante como a polícia por estar sujeito às dificuldades stressantes e excessivas de investigações decorrendo ao mesmo tempo de homicídios particularmente violentos ajuda a melhor traças as linhas do romance acerca da sociedade enclausurada na ilha.
Uma sociedade fechada sob a falta de preparação para a mais negra realidade possível, embora não esteja inconsciente da mesma.
Aceitar que estamos perante um romance e não um polícial puro torna, igualmente, mais fácil aceitar a relevância que tem o romance entre Johan e Emma.
O que pareceria uma intromissão - da condição feminina da autora, arrisco-me a dizer - na solidez do seu trabalho, revela-se uma estrutura útil para ela usar em paralelo ao mistério em causa e, com ela, atravessar de um livro para o seguinte.
E usar isso para reforçar a ligação problemática que se cria entre esta sociedade fechada e o resto da Suécia sempre que a segunda - mais aberta, mais complexa, mais moderna - se intromete na vivência dos que ainda estão remetidos a um certo passado aldeão.
A forma como este meio relega à invisibilidade os males que no resto da Suécia podem ser encarados de frente é a causa da trama e continua a ser o seu resultado.
A falta de esperança para as vítimas que continuarão sem serem ajudadas - porque têm de viver com os eventos desvendados na vida da rapariga morta - parece fácil de aceitar depois da violência que não pode ser escondida desaparecer.
Importa regressar à normalidade de assombro silenciado, num local onde o clima obriga as pessoas a resguardarem-se ao máximo do frio e serve de desculpa perfeita para que se resguardem umas das outras e da realidade que deveria tocar a todos.
Do seu primeiro livro para este, Mari Jungstedt conseguiu tornar a investigação mais interessante, sublinhando e fazendo evoluir a anterior abordagem onde as pistas eram raras. Agora continuam escassas e têm uma existência muito mais subtil.
Este mecanismo leva o leitor a estar no mesmo ponto em que os próprios investigadores, não para haver uma identificação com as personagens mas para compreender a realidade do trabalho tal como é executado.
Um trabalho que ajuda a caracterizar as personagens e permite à autora fazer descrições negríssimas do mundo em que as coloca.
Mas que não é o motivo para um policial, antes uma maneira de trazer à tona deste romance o que o quotidiano raramente permite ver.
O realismo nórdico do policial pode ser, na verdade, uma inverosímil realidade. Nenhuma sociedade é perfeita mas, para o mostrar, os autores tiveram de lhe inventar terrores impossíveis.
Os livros de Mari Jungstedt em Portugal parecem vítimas continuadas de maus tratos linguísticos. Se com Ninguém Viu era a revisão, aqui a culpa fica mesmo com a tradutora, Irene Guimarães.
Tendo trabalhado a partir da versão inglesa do texto, a tradutora deixa à mostra uma de duas situações: a tradução foi feita apressadamente ou a tradutora tem muito pouco sentido prático da Língua Inglesa.
Qual das duas seja, as traduções literais sucedem-se com o sentido a ficar enviesado e a leitura em português a tornar-se bizarra.
Apetece-me citar alguns exemplos claros de tais problemas identificando - como qualquer leitor consegue - as origens da expressão.
"Perfil baixo" é a tradução de low profile. "Carro de corrida" é a tradução de cart, a charrete de corrida puxada por um cavalo. "Contudo, outro Natal sozinha com a mãe" é a tradução de Yet another Christmas alone with mother.
São alguns dos exemplos em que os erros se tornam demasiado evidentes, mas outras opções, mesmo certas, poderiam ter sido melhor pensadas para a língua portuguesa. A expressão "todos concordaram num murmúrio" soaria melhor do que "todos acordaram num murmúrio" quando a autora se refere a uma reunião.
Perante esses aspectos a falta de uma nota que referisse o valor em Euros de 80 mil Coroas, que desse noção real de quanto esta pequena fortuna significava, parece insignificante. Mas é um sintoma mais do bom trabalho que ficou por fazer.
Ninguém Quis Saber (Mari Jungstedt)
Contraponto
1ª edição - Junho de 2012
240 páginas
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