O Quase Romance de Miguel Sousa Tavares é uma quase memória, uma quase reportagem, um quase diário e um quase livro de viagens.
É um livro que não cabe numa categoria não porque extravase os limites da definição de várias delas mas porque é demasiado estreito para satisfazer as exigências de qualquer uma delas.
Falta-lhe uma voz que o comande e que lhe dê forma. Tem como narrador um homem levado pela memória de uma velha foto que lhe cai nas mãos. Mas esse narrador parece determinado em ser preciso sem nunca se deixar levar pela pieguice que o seu relato de terna memória deveria denotar.
Enumera as câmaras que transporta mas quando chega o momento de revelar que através de uma fresta de porta olhou o corpo nú da sua companheira de viagem, o seu grande culminar de emoção é um triste Estava cansado de mais para desviar o olhar.
Pode até ser que a mulher agora relembrada seja merecedora de um livro, não pelo seu corpo mas porque o seu espírito é inolvidável, mas se o narrador lhe olhou o corpo convinha que o tivesse feito por apreço ou porque no meio do deserto a beleza feminina é escassa e o olhar ainda pode ser uma meiga forma de elogio e desejo.
Claro que o deserto é algo que também não existe na sua voz. Não arrisca falar do deserto, dar as impressões pessoais que poderiam soar falhadas mas mereceriam o elogio pela sua ousadia.
A viagem define-se pelos atrasos, pelos quilómetros, pelos enganos. Raramente se define pelo que está à frente dos olhos, por algo mais do que as acções descritas com a minúcia que vinte anos de distância já não deviam permitir.
Só quando ela, Cláudia, fala é que o livro ganha personalidade porque corre riscos.
Claro que a estratégia é das mais fáceis possíveis, visto que ela está morta - morre no final do livro diz o primeiro parágrafo, que é o mesmo que matá-la logo de início - e vem falar-lhe numa forma de wishful thinking que ajuda a completar os espaços em que falha a exactidão do narrador: Mas, depois, veio e deitou-se abraçada a mim. Ou assim me pareceu.
A incerteza dele dura pouco, pois Cláudia só fala por dois capítulos, mas deixa as impressões mais profundas do livro, como ao falar da transformação da ordem em caos quando a tempestade de areia os apanha e dando a conhecer o medo e a beleza que se apreciam sendo fustigados por ela.
A voz dela faz sentir o deserto e dá a conhecer o preço físico da viagem. Os parágrafos que lhe pertencem são, sim, quase um texto por direito próprio. Um conto apenas, talvez, que ficou abafado pela voz dele.
Ele, arrogante, afirma ao início lembrar-se de todos os detalhes para depois duvidar do nome do barco em que embarcou ou - o que deveria ser mais importante - se ela o abraçou ou não.
Ele, irritante, não consegue evitar acrescentar informação redundante para o leitor atento, até no detalhe da inexistência do Euro quando já tinha vincado que a viagem começara em 1987.
Ele, coitado, não tem voz e deveria deixá-la falar a ela o tempo todo, mesmo que Cláudia já só possa falar porque ele lhe imaginava uma voz.
No teu deserto (Miguel Sousa Tavares)
Oficina do Livro
1ª edição - Julho de 2009
128 páginas
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