terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Desconfiança em que confiar

Todos os leitores têm uma desconfiança própria para com alguns livros, aquilo a que se chamará preconceito e que sinto que aumenta tanto com o número e a variedade de livros que se lê. Mas que também aumenta com o exercício crítico sucessivamente realizado.
Essa minha desconfiança activou-se para com este livro quando já era tarde demais. Activou-se perante o título a que só dei a devida atenção já na página de rosto onde as reticências deixam de ser um pormenor que a mente tende a ignorar quando na capa estão em jogo os efeitos de cor.
Não tenho estatística que me apoie, mas não me recordo de título algum - ou título algum relevante - que faça uso de reticências.
O título do livro é o local onde tal marca de pontuação não faz falta. O mistério do que fica por dizer no título é, naturalmente, tudo o que vem depois dele mas que o terá originado.
Usar reticências no final do título do livro é abusar de um estilo que não tem razão de ser e que, por isso, gera a forte desconfiança de que vim falando.
A desconfiança, neste caso, mostra-se certeira e justa. Tal como no título, por todo o livro o abuso de um estilo inconstante e capaz de impressionar apenas os ingénuos. Trata-se do barroco do bacoco, se ninguém levar a mal que também eu jogue com as palavras.
A autora não atenua esse estilo em parte alguma do livro. Não evita duplicar as metáforas quando uma era suficiente. Não evita buscar um vocábulo menos lembrado para engalanar os seus parágrafos quando a banalidade do sinónimo mais comum lhe assentava melhor. Não evita qualquer adjectivo que a inspiração do momento lhe tenha sugerido quando a releitura mostra que é insensata a sua presença.
O estilo assim tão extravagante até seria útil em certas passagens que confessamente são delírios do protagonista, mas como permanente exercício de memória parece forçado, sobretudo nos tempos dedicados à assimilação da vida na pacata e simples aldeia tão tipicamente portuguesa.
Uma aldeia que até é a fonte das duas melhores ideias do livros, historietas de maldade (o pequeno delinquente que se impõe como tirano) e mitos (os fantasmas que percorrem encruzilhadas na estrada) que manietam as pessoas enquanto agigantam os espaços esquecidos na imagem global de um país.
O resto do livro é um thriller como desculpa para o exercício de linguagem que martela sempre a mesma nota.
Como vinha escrevendo, há passagens que precisavam de ser mortiças na linguagem, soar mesmo banais e corriqueiras. Porque não o fazendo, não matizando a memória do protagonista, a autora revela pela própria falta de surpresa as intenções perversas com que joga o entendimento do leitor.
Qualquer leitor experimentado lhe diria que a manipulação narrativa não se joga assim - sobretudo, assim tão tardiamente.
Desconfia o leitor porque o texto está a ser demasiado indiferente (como desconfiaria se estivesse a ser demasiado intencional) e fica mais alerta, tornando a surpresa em mera confirmação (da desconfiança, pois claro).
Entre a desconfiança a abrir e a desconfiança a fechar, está o miolo da confirmação de um livro falhado.


Na Senda da Memória... (Sónia Cravo)
Esfera do Caos
1ª edição - Setembro de 2011
160 páginas

Sem comentários:

Enviar um comentário