sexta-feira, 30 de setembro de 2011

À medida da vida

A velha senhora ao canto da página é como a figura de referência que um artista coloca no esboço de uma enorme estrutura.
Dessa forma se dá noção da escala com o ser humano como medida. E esta vida é realmente bem maior do que a mulher que a viveu e que a conta.
A mulher algo frágil que se faz passar por um pouco senil para preservar a sua solidão e em paz olhar o mar.
Uma mulher que aguentou a Guerra Civil Espanhola até conseguir fugir para Biarritz e ver chegar os alemães. E depois acabou em Portugal aguentando uma versão apenas ligeiramente diferente de Franco.
Uma mulher que num breve período perdeu a primeira família que teve para, muitos anos depois, ver tudo repetir-se com a família que conseguiu construir.
A vida desta mulher, mesmo nas tragédias normais de uma vida que se prolonga e vê as dos outros irem chegando ao seu inevitável destino, foi imensa. E também foi imensa nalgumas alegrias, mas essas contam sempre menos quando se faz a revisão do que ficou para trás. Ou talvez não contem menos, mas certamente marcam menos a cronologia da memória.
Até uma traição ela sofreu, o que lhe ocupou muitos anos, que tanto lhe causou pesar como a fez descobrir os direitos que tinha ao prazer.
Para uma mulher que sobreviveu à guerra e por pouco não entrou noutra deveria ser uma questão menor. Mas nunca é, nem para ela nem para ninguém.
Aliás, como ela dirá, ainda que a guerra matasse incontáveis pessoas a cada dia, a sua pior memória desse tempo foi da cedência que teve de fazer a um soldado para que ele se satisfizesse esfregando-se contra ela.
Assim é a vida - toda uma vida e todas as vidas -, um conjunto de dados pessoais que conta mais do que quaisquer acontecimentos da História.
A memória desta mulher irá perder-se - porque ela reconta a vida sempre para si mesma - enquanto os feitos de outros ficarão impressos para a posteridade.
Só que enquanto os donos desses feitos morreram e assim se tornam figuras construídas, enquanto houver quem a lembre ela continuará, mesmo com as rasuras que isso implica, por mera falta de conhecimento de todas as histórias que quem as viveu saberia contar mas guardou.
Infelizmente esta vida é contada com uma mentalidade demasiado reaccionária, própria da idade e das vivências de quem fala, mas demasiado militante para o leitor.
Nem sempre o discurso inflamado parece servir um propósito para a história e fica a desconfiança dos objectivos reais que o autor esconde na ficção.
A sensação é desagradável quando a insistência argumentativa se mistura numa ficção que tinha tudo para ser agradável.


Toda uma Vida (Henrique Monteiro)
Publicações Dom Quixote
1ª edição - Abril de 2010
208 páginas

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