Ao primeiro policial protagonizado pelo Inspector Montalbano fiquei com a crença de que Andrea Camilleri é um génio.
Até hoje cada uma das suas obras tem provado isso mesmo e cada vez mais as suas obras fora do formato daquele género.
Têm sido algumas as obras curtas traduzidas por cá, mas cuja perspicácia acerca da condição humana rivaliza com a dos grandes romances.
Sem desperdício de qualquer palavra, sem excesso de qualquer expressão, Camilleri escreve tal como é: um homem sábio cuja idade já não lhe permite derivas ou falhanços, apenas obras exímias.
Obras nascidas da visão em simultâneo conciliadora e de confronto entre a estranheza da realidade que vê à sua volta - e se Itália é terreno fértil para tal! - e a familiaridade das mais arrojadas criações literárias.
Desta vez dedicou-se a explorar a ruptura de crescimento causada pela diferença entre a exigência que a sociedade faz e o desejo natural. Através da história de uma rapariga com corpo de mulher.
Um princípio clássico das histórias escabrosas que falam dos mais primitivos instintos humanos e que não deixam de remeter para os mesmos temores para os quais os contos recolhidos pelos Irmãos Grimm já alertavam.
Ainda que faça pensar no enorme retrocesso que representa este tormento que os homens continuam a colocar sobre as mulheres, este não é um alerta feito livro.
Este é um recontar muito original de um certo comportamente feminino que se perpetua a partir do desfasamento demasiado intenso entre a mente e o corpo.
Neste caso uma mulher escolhida para ser exibida por um marido incapaz de fazer sexo mas que a ama ao ponto de lhe proporcionar jovens amantes.
Uma mulher que não consegue deixar de se envolver emocionalmente com um desses amantes a prazo, revelando a sua infantilidade emocional de quem confunde bom sexo com paixão.
Esse amante, um adolescente ele próprio, tudo fará para a persuadir a continuar o jogo de sedução, até ao ponto em que ela acredita que é amor aquilo que vivem e se sente capaz de partilhar o seu mundo secreto.
Vindo da sua infância interrompida, esse mundo secreto aglomera a imaginação infantil com a perversidade adolescente, componentes da sua personalidade que lhe ficaram vincadas logo abaixo da superfície mais visível do seu comportamento.
A quebra do seu desenvolvimento e todas as etapas fora da normalidade que enfrentou apenas por ser mais bela do que as restantes - ou ser bela mais cedo do que as restantes - levam a que a sua percepção confundo todos os polos que encaramos com naturalidade.
Seja realidade ou imaginação, seja bem ou mal, para ela tudo é indistinguível e existe continuadamente. Tal como para os homens da sua vida ela ser menina ou mulher, ser esposa ou amante, ser dela mesma ou de todos os que a queiram, era o mesmo.
Daí nasce a grande tragédia deste livro - na verdade tragicomédia - cheia dos actos extremos que nascem do despeito e do calculismo.
O resultado mantém o leitor sempre a exaltação no leitor, dando-lhe doses renovadas de surpresa escrita com uma beleza que não está orientada para a exibição mas para a precisão.
Não sei quantos exemplares de cada livro de Andrea Camilleri vende, mas é uma preciosidade que a Bertrand continue a publicá-lo entre nós.
Infelizmente ainda não o faz com a mesma cadência com que ele os escreve, vários por ano como se estivesse numa luta contra o tempo para nos legar todas as maravilhas que tem dentro da sua mente.
O todo-meu (Andrea Camilleri)
Bertand Editora
1ª edição - Junho de 2014
152 páginas
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