Tenho por hábito deixar para o final do texto as considerações sobre os elementos editoriais de um livro que podem influenciar a apreciação do texto que guarda no seu interior.
Desta vez o contrário tem de acontecer pelo choque que é descobrir - já no último terço do livro - alguns contos publicados directamente na sua língua original, o Espanhol que não necessariamente na sua forma mais abrangente.
Não faz para mim sentido que numa edição nacional alguns textos - que podem ser contados pelos dedos de uma mão só - surjam noutra língua que não o Português.
Mesmo que tal tenha acontecido por uma questão financeira - todos compreendemos que uma editora que se lança no nosso pequeno mercado tem limitações nesse domínio - não se aceita.
Não é porque o Espanhol é, no essencial, parecido com o Português ou porque os leitores nacionais têm boa capacidade de adaptação linguística que se pode justificar a falta de tradução dos contos.
Tal assumpção não aconteceria caso tivesse sido convidado um escritor Polaco ou Flamengo.
O que aconteceu foi uma perda irreparável, pois mesmo com uma tentativa esforçada para ler o conto de David Toscana - escritor de quem muito apreciei Santa Maria do Circo e O Último Leitor - não era capaz de mais do que "seguir a história". As pequenas falhas na leitura não me permitiam usufruir da qualidade da escrita.
Este forte lamento numa edição tão convidativa como esta, com uma ideia editorial interessante e um título perspicaz e chamativo mas, acima de tudo, um cuidado na combinação dos textos com as fotos e ilustrações que os acompanham, parece-me um caso grave que poderia (ou que poderá mesmo, em alguns casos) colocar em causa futuras reacções a livros da editora.
Até porque, no restante, esta antologia é como qualquer outra. Alguns dos contos são muito bons e outros só podem ser classificados como falhanços.
E essas considerações dependerão sempre do leitor, mesmo se o editor poderia ter feito uma selecção de trinta autores ainda mais consistente.
Com isso em mente, abordarei apenas os contos que se destacam pela sua alta qualidade.
A Berlim de Joana Bértholo é uma execução com mestria de uma história de dissociação de um casal que é, ao mesmo tempo, a história de diferentes processos de inadaptação dos emigrantes.
Tudo com a descrição palpável de um perfil da cidade que é uma retoma mais discreta - no sentido em que é mais difícil de penetrar - do que há 100 anos atrás a tornou numa das míticas cidades do pecado.
O perfil de uma cidade que nunca se apaga, mesmo que agora esteja coberto pelo "cosmopolismo".
Mário de Carvalho dá em Ashitueba uma visão de um Futuro que é já o Presente de muitos locais. A ameaça da derrocada do que foi a capital de um Império e um dos símbolos da Europa é a ameaça sobre a persistência da memória e da consicência.
Em pouquíssimas páginas, a criação de um mundo à beira do desaparecimento e um texto com uma força de alerta para lá do seu prazer literário: da decadência não há escapatória.
Uma história de amor com todas as grandes dificuldades a ela inerentes - das diferenças de classe à pressão dos pares - numa Babel moderna, isto é a Tallinn de João Lopes Marques.
O contínuo desencontro de culturas apesar das ligações internéticas como símbolo de um mundo que está todo ligado sem sequer se ter chegado a conhecer.
E uma certa ironia para com as consequências do fim de uma história de amor para cada género, sobretudo tendo em atenção que é uma mistura de velhas realidades e modernas hipóteses que afastam um casal que na sua improvável junção tinha tudo para "dar certo".
A La Paz de Raquel Ochoa é toda ela ironia cómica (mal) tratando a diferença que se estabelece entre o viajante ocasional e o viajante "profissionalizado".
O acaso que proporciona as melhores descobertas e a sistematização que se torna num desapontamento. A ignorância continua a proporcionar felicidade, porque traz a liberdade de falhar e a superação desse facto em direcção a novas vitórias.
João Ricardo Pedro proporciona-nos uma viagem literária perpétua a Montevideu naquele que é um dos exercícios mais extraordinários do livro.
Um exercício de metalinguagem cheio de referências apaixonantes que se desejam que fossem verdadeiras. A literatura fabricada a criar desejo de uma existência real.
Um exercício ainda mais repleto de imaginação, que merecia uma extensão para uma edição independente do conto.
Depois deste conto, mais nenhum pareceu ser capaz de se destacar até ao final do livro, o que demonstra bem o efeito que ele tem no leitor.
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